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Solomon (2012) – Nietzsche, confronto com a moralismo

Data: 2025-11-03 06:00

What Nietzsche Really Said

* Na obra cinematográfica singular de Liliana Cavani, intitulada “Para Além do Bem e do Mal”, a personagem central, dotada de um charmoso bigode e interpretando Nietzsche, irrompe em gargalhadas durante uma conversa à mesa, proferindo de forma descartável, mas com profundidade crítica: “A Moralidade—há, há!”, o que encapsula o ponto de vista frequentemente depreciativo de Nietzsche sobre a Moralidade, embora ele a considerasse a suprema e mais bem-sucedida manifestação do declinismo e do niilismo, contrariando os principais moralistas que alegavam ser a Moralidade, juntamente com a religião, a proteção contra as forças do declinismo e do niilismo. * Antes de avançar na compreensão do significado de moralidade, é crucial estabelecer uma distinção meticulosa entre o conceito de “moralidades” (no plural), entendidas como diversas “ordens de valor hierarquizadas”, e o conceito de “Moralidade” (no singular e com inicial maiúscula), que se refere a um sentido específico característico, embora não exclusivo, da sociedade burguesa moderna.

  • O primeiro sentido do termo, moralidade (em minúsculas), que funciona como um gênero com múltiplas espécies e se enquadra na antropologia, postula que toda cultura — seja ela cosmopolita ou “primitiva”, homogênea ou multicultural — possui seus próprios valores, ideais, tabus, diretrizes práticas e regras (que em certas sociedades se tornam leis), o que implica que a própria condição humana pressupõe a existência de uma moralidade.
  • Mesmo um eremita, isolado da sociedade, necessariamente vive de acordo com valores, como a manutenção da solidão, ideais, como o possível esclarecimento pessoal, tabus, como a proibição de consumir esquilos, diretrizes práticas, como garantir madeira suficiente para a fogueira, e regras, como cantar diariamente ao pôr do sol, sendo a moralidade uma coleção de práticas herdadas, inventadas ou até instintivas, o que Hegel designou por “Sittlichkeit” (ética social), um conceito que, enquanto tal, não contém valores específicos, regras concretas, proibições, diretrizes particulares ou uma orientação filosófica definida.

* Em contraste, o segundo sentido do termo, Moralidade (com a inicial maiúscula), é especificamente particular, mesmo que ocasionalmente seja descrito por meio de regras ou princípios bastante gerais e até mesmo “universais”.

  • A ilustração mais conhecida de um código formal de Moralidade é o Decálogo, os Dez Mandamentos, que Deus entregou pessoalmente a Moisés no Monte Sinai, caracterizados pela sua especificidade: “Não matarás”, “Não roubarás”, “Honra teus pais”, entre outros, e possuindo uma fonte autoritária (o próprio Deus) e uma forma lógica particular (expressa como comandos incondicionais).
  • Immanuel Kant capturou essa forma naquilo que ficou conhecido como o “Imperativo Categórico”, negando que a necessidade da Moralidade assim concebida residisse na sua suposta Origem Divina, mas sim como um produto da Razão Prática, todavia, o que ele defende na mais sofisticada terminologia filosófica é a mesma e única Moralidade que assimilou durante a sua infância piedosa sob a orientação de sua mãe.

* É esta concepção de Moralidade — como algo singular, categórico (em oposição a condicional às circunstâncias e ao temperamento de um povo ou indivíduo), ditado pela autoridade (seja Deus ou a Razão Prática) e em grande parte proibitivo (“Não deves…!”) — que Nietzsche rejeita e contra a qual ele declara guerra.

  • É imperativo reiterar que Nietzsche não sugere ou implica que se deva sentir liberdade para matar, roubar, ofender ou desonrar os pais, pois o seu ataque à moralidade não significa que “tudo é permitido”, e a sua autoproclamação como “imoralista” não deve levar a interpretações errôneas da sua bravata escolar.
  • Nos seus momentos de menor extravagância, ele se manifesta sensatamente a favor não apenas das virtudes habituais (coragem, generosidade, honestidade), mas até mesmo de uma virtude refinada como a cortesia, indicando que a rejeição nietzschiana não se dirige às moralidades (no sentido geral) nem às regras aceitas do comportamento civilizado.

* Para compreender a sua guerra contra a Moralidade, a palavra-chave da ética de Nietzsche é derivada, previsivelmente, dos antigos, especificamente do poeta grego Píndaro (522–438 A.C.E.), que ele cita repetidamente: “Torna-te quem tu és!”

  • Embora esta frase possa parecer um conselho moral inútil e vazio, semelhante à frustrante garantia parental a um adolescente confuso de “Sê apenas tu mesmo”, a diferença reside no uso do verbo “tornar-se” por Nietzsche, em vez de “ser”, pois nesse pequeno detalhe reside toda uma filosofia.
  • A questão é, de fato, o eu, mas não apenas a autoidentidade de uma pessoa específica.

* Nietzsche afirma que cada indivíduo possui um conjunto único de virtudes, mas ao acreditar que a verdadeira essência é definida por um conjunto de regras ou princípios gerais (imperativos categóricos), nega-se essa singularidade, sacrificando-se as virtudes à categoria insípida e anônima de “ser uma boa pessoa”.

  • O objetivo de Nietzsche não é defender a imoralidade, mas sim a ideia de excelência humana que define a sua ética: deve-se tornar quem se é, ou seja, “Sê tudo o que podes ser”, para citar um recente *slogan* de recrutamento do Exército dos E.U.A.
  • A busca pelo melhor de si geralmente, mas não necessariamente, harmoniza-se com as proibições da moralidade popular, como exemplificado pela interrogação: “Porque haveria eu de roubar se posso fazer por mim mesmo?”.

* Uma maneira de interpretar a rejeição de Nietzsche à Moralidade é através de uma justaposição histórica entre dois tipos muito distintos de teoria ética.

  • Por um lado, tem-se Kant, o modelo do filósofo moral que se concentra em regras gerais e obrigações particulares, que propôs que a moralidade de certas ações fosse determinada pela possibilidade de se querer que todos agissem de acordo com elas; se o comportamento em questão pudesse ser endossado como uma regra geral, a ação seria moralmente aceitável, caso contrário, se a generalização resultasse numa contradição lógica, seria moralmente errada.
  • Kant defendia que somente a razão pode determinar o certo e o errado, e que os princípios da moralidade são idênticos para todos os seres humanos.

* Por outro lado, apresenta-se Aristóteles, um filósofo antigo que, à semelhança dos seus mestres, Platão e Sócrates, focou na excelência individual ou virtude (arete).

  • Aristóteles jamais negou ou ignorou o contexto social e político necessário para alcançar a excelência, assumindo que esta só poderia ser atingida dentro de certas estruturas sociais e políticas, seguindo o aforismo comum entre os antigos: “Para viver uma vida boa, é preciso viver numa grande cidade”.
  • A excelência individual é também definida por circunstâncias particulares, pelo caráter e pelo papel social de cada um, e apesar de as virtudes poderem ser descritas genericamente (coragem, veracidade, e assim por diante), o foco de Aristóteles permanece nos indivíduos que as exemplificam e cultivam.
  • Princípios gerais, como “Sê corajoso!”, tendem a ser retórica vazia, pois a prova reside no comportamento de cada um, e não nos princípios que se seguem ou se afirma seguir.

* Em termos simples, Nietzsche assemelha-se mais a Aristóteles do que a Kant, defendendo, na terminologia contemporânea, uma ética da virtude em vez de uma ética de princípios racionais ou obrigações.

  • Embora Aristóteles admitisse um papel para os princípios racionais, a motivação ou justificação de uma ação não residia na obediência ou respeito por esses princípios, e da mesma forma, os gregos possuíam uma clara noção de dever, mas este advinha dos papéis e responsabilidades de cada um, e não de princípios universais, como no caso de Kant.
  • Contudo, a comparação entre Nietzsche e Aristóteles não deve ser exagerada, pois Nietzsche considerava Aristóteles, juntamente com Sócrates e Platão, como “decadentes”, retardatários da glória da Grécia, acusando-os de defenderem nostalgicamente virtudes já perdidas em Atenas, e indo muito além de Aristóteles ao enfatizar a singularidade do indivíduo.

* Adicionalmente, apesar de Nietzsche poder concordar que, idealmente, uma grande sociedade seria um terreno fértil para o cultivo das virtudes nos seus membros, a sua própria rejeição da sociedade em que vivia sugere uma separação entre individualidade e comunidade, virtude e boa cidadania, que teria sido chocante para Aristóteles.

  • Um eremita filosófico como Nietzsche (e o seu porta-voz fictício, Zaratustra) teria uma maior probabilidade de desenvolver a sua excelência particular ao não se envolver na sociedade burguesa.
  • Na verdade, o fato de se encontrar envolvido, pensando em si mesmo como um bom cidadão e seguindo as regras gerais em vez das suas próprias virtudes particulares, é o que Nietzsche frequentemente condena como “moralidade de rebanho”, uma moralidade concebida para vacas e não para seres humanos criativos.

PS: SOLOMON, Robert C. What Nietzsche Really Said. Westminster: Knopf Doubleday Publishing Group, 2012.

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