Solomon (2001) – Existencialismo
Data: 2025-11-03 05:12
From rationalism to existentialism
The existentialists and their nineteenth-century backgrounds
Uma introdução a um livro sobre o desenvolvimento do existencialismo deveria começar com uma breve caracterização de “existencialismo”, mas, como Sartre observou, “essa palavra foi tão estendida e assumiu um significado tão amplo que já não significa absolutamente nada”. Autores tão diversos quanto Sócrates, Kafka, Dostoiévski, Leroi Jones, Santo Tomás de Aquino, Pascal e Norman Mailer já foram descritos como “existencialistas”; por outro lado, figuras centrais como Camus, Jaspers e Heidegger negaram sua filiação a esse movimento. Interpretado amplamente, “existencialismo” é outro nome para o pensamento ocidental; interpretado estritamente, reduz-se à filosofia de Jean-Paul Sartre. Por essa razão, não se tratará aqui de delinear o existencialismo nem de identificar existencialistas. Uma interpretação razoável de existencialismo certamente incluiria Sartre, Kierkegaard e Heidegger (a despeito de sua própria rejeição do título), mas as diferenças entre essas três figuras são tão grandes que não há um conjunto de doutrinas comum a elas que também as distinga de muitos outros grupos influentes de filósofos. Quando se acrescentam Nietzsche, Camus e Jaspers à lista, constata-se que já não se sabe o que “existencialismo” significa.
O que se encontra no estudo da filosofia europeia recente é um desenvolvimento mais ou menos contínuo de uma série de temas que alcançam sua formulação mais explícita na filosofia de Jean-Paul Sartre. Contudo, as variações sobre esses temas isolam cada filósofo dos demais, à medida que cada um imprime sua marca indelével em seu pensamento. Poucos desses filósofos tolerariam a ideia de participação em um movimento: o nome “existencialismo” sequer foi aplicado a essa filosofia até depois de todas as obras que se discutirão terem sido publicadas. Kierkegaard e Nietzsche desprezavam a filosofia das “escolas”, e Heidegger comentou que a noção de “escola de filosofia” é uma contradição em termos. Kierkegaard, Nietzsche, Heidegger e Sartre são frequentemente tratados como as figuras centrais da filosofia existencial, mas mesmo um exame superficial de seu pensamento mostra a diversidade desse grupo. Kierkegaard era um cristão devoto e os outros três eram ateus; Heidegger foi nazista, Sartre comunista, e Kierkegaard e Nietzsche antipolíticos. Kierkegaard sustentou que o sentido da vida só poderia ser encontrado em Deus, Nietzsche encontrou-o na arte, Sartre no engajamento político, e Heidegger na própria filosofia. Nietzsche foi um “naturalista” ético, enquanto os outros três foram resolutamente antinaturalistas.
É geralmente aceito que o início do existencialismo se encontra nas obras “intempestivas” de Soren Kierkegaard, e que o existencialismo como movimento — e a filosofia de Kierkegaard em particular — deve ser distinguido como uma ruptura radical com a filosofia ocidental tradicional. Ambos são distinguidos por um “individualismo apaixonado”, uma “integração de filosofia e vida” e um “antirracionalismo”. Entretanto, pouco estudo basta para constatar que isso não é precisamente o que o existencialismo é, nem mesmo a filosofia “existencial” ensinada por Kierkegaard. O existencialismo não começa com uma ruptura radical em relação à filosofia tradicional, mas com uma reconsideração mais ou menos cuidadosa da filosofia tradicional e com a continuação dessa filosofia (a despeito de anúncios dramáticos de “novos começos radicais”) em direções surpreendentemente tradicionais. Existencialistas podem orgulhar-se de sua “paixão” e fazer observações frequentes contra a “razão”, mas se verificará que os autores existencialistas fazem bom uso da razão eles próprios. Atacam apenas uma noção peculiar de “razão” na filosofia pós-kantiana. “Irracionalidade” é uma categoria perigosa e de pouca utilidade para compreender as sutilezas do raciocínio existencialista. Por outro lado, é comum dizer-se que os existencialistas têm paixão, enquanto outros filósofos apenas falaram sobre paixão (compare-se Kierkegaard: “Há dois caminhos: um é sofrer; o outro é tornar-se professor do fato de que outro sofreu.”). É verdade que os existencialistas insistem em que o homem deve pôr sua filosofia em prática na própria vida, e que a filosofia não é um empreendimento acadêmico destacado. Contudo, é duvidoso que isso distinga os existencialistas de muitos outros filósofos: filósofos religiosos, filósofos da linguagem, a maioria dos filósofos políticos e, especialmente, os pragmatistas americanos, para quem a “vivencialidade” de uma filosofia é tão crucial quanto seria para qualquer existencialista. Além disso, escrever sobre paixão é escrever sobre paixão, quer se escreva apaixonadamente ou não, quer o autor tenha experimentado a paixão ou não. Conceda-se que se pode distinguir entre conhecer a paixão e conhecer sobre a paixão, mas não se encontrará tal distinção útil para compreender o existencialismo. A descrição pessoal do desespero por Kierkegaard em O conceito de angústia e a teoria elaborada de Freud sobre a ansiedade em O problema da ansiedade estão em pé de igualdade lógica. Quanto aos celebrados escritos passionais dos existencialistas, encontrar-se-á mais disso na Fenomenologia de Hegel, que certamente não é um existencialista, do que nas obras filosóficas de Heidegger e Sartre.
Também é opinião popular que os existencialistas diferem de outros movimentos filosóficos por seu intenso “individualismo”. Novamente, essa caracterização revela-se inadequada por ser demasiado inclusiva ou demasiado restritiva. Se se afirma que os existencialistas foram, eles mesmos, individualistas, isso mal serve para distingui-los de muitos outros praticantes de uma disciplina conhecida, desde Diógenes, por seus excêntricos. Também dificulta incluir Heidegger, que aderiu ao partido nazista por ser o estágio vigente do Zeitgeist público, e é questão de sério debate se o comunismo de Sartre e de Merleau-Ponty, ainda que pessoalmente reformulado, se enquadra na caracterização do existencialismo como individualismo. Se essa caracterização pretende referir-se apenas ao fato de que os existencialistas escreveram sobre o indivíduo, então mal há um filósofo na tradição ocidental (mesmo Hegel) que não seja existencialista. P. F. Strawson, por essa conta, deveria ser o principal escritor existencialista. Ouvimos de modo semelhante que o existencialismo se ocupa da existência (em vez da essência). Não é preciso deter-se no ponto óbvio de que a existência e a natureza da existência foram focos da filosofia ocidental desde os últimos pré-socráticos. Contrapõe-se que esses filósofos preocuparam-se apenas com o conceito de “existência” e não com a existência mesma. Ver-se-á que essa crítica repousa no mesmo mal-entendido que a alegação de que os existencialistas conhecem, em oposição a conhecer sobre, a paixão. Falar sobre existência é empregar e problematizar o conceito de “existência”. Assim, verifica-se que Kierkegaard preocupa-se tanto com o conceito “existência” quanto Hegel. Críticos, notadamente Kierkegaard, há muito argumentam que Hegel e filósofos antes dele “negligenciaram a existência”. Isso costuma ser defendido no sentido ridículo de que não implantaram seus eus de algum modo em sua filosofia. É claro que, em uma interpretação mais simpática, sua preocupação com a existência deveria ter-se manifestado em escritos afins à autobiografia, em vez da preocupação “universal” da filosofia. Note-se, porém, que a diferença entre autobiografia e filosofia universal (ou entre autobiografia desinteressante e autobiografia fascinante) não é uma diferença entre existência e o conceito de “existência”, mas apenas uma diferença no escopo do discurso sobre a existência. Encontrar-se-á muito a criticar nessas tradicionais e excessivamente fáceis exposições do existencialismo à medida que o estudo avance. Por ora, convém desconfiar de todos esses relatos e precaver-se contra o grosseiro mal-entendido do existencialismo que fomentam.
Se se busca a ruptura radical com a filosofia tradicional que põe o existencialismo em movimento, ela não será encontrada em Kierkegaard, mas em Immanuel Kant. É a “Revolução Copernicana” de Kant que inicia o suposto ataque existencialista às pretensões da Razão de fornecer-nos a Verdade Absoluta, marcando uma ruptura verdadeiramente radical com o Iluminismo (com o qual Kant é costumeiramente associado). É também Kant quem rejeita a onipotência das ciências, assinalando uma nova separação da filosofia em relação à ciência e à “atitude natural”. Mais importante ainda, é Kant quem nos força a considerar as verdades filosóficas não como verdades necessárias sobre o mundo, mas como descrições de nosso modo de estruturar o mundo. Com o movimento revolucionário de Kant do racionalismo e do iluminismo para a visão antropocêntrica da “síntese” humana do mundo, os caminhos para o romantismo e depois para o subjetivismo existencialista ficam claramente abertos. Costuma-se pensar que Kant é o adversário máximo de autores como Nietzsche e Sartre, mas a dependência de quase todo filósofo do século XIX e XX em relação ao gênio de Kant marca essa disputa como uma querela de família. A ruptura dos existencialistas com a filosofia tradicional é, na verdade, o desdobramento da ruptura muito séria engendrada por Kant. A “revolta existencialista” está longe de ser uma rejeição da filosofia ocidental tradicional: o herói existencialista recorrente é Sócrates. O existencialismo é, em larga medida, uma tentativa de reconduzir a filosofia a seus fundamentos históricos.
Para estabelecer essa tese, será necessário traçar em detalhe o desenvolvimento do existencialismo (e da fenomenologia) a partir da filosofia de Kant. Os problemas examinados são os mais antigos da filosofia — questões concernentes à crença em Deus, à justificação da moralidade, à existência do mundo “externo” e de outras pessoas, ao problema do “livre-arbítrio” e ao problema de validar certos princípios fundamentais do conhecimento científico. Ter-se-ia podido apresentar o estudo traçando o movimento de vários filósofos em cada um desses problemas, mas isso seria imprudente por várias razões. É virtualmente impossível separar o tratamento que um filósofo dá a um problema de sua resposta a outro. Por exemplo, ver-se-á que a tentativa de Kant de justificar o cristianismo depende fortemente de sua concepção de moralidade, a qual, por sua vez, depende fortemente de sua crítica da Razão, que, por sua vez, depende de sua concepção de conhecimento. De modo semelhante, ver-se-á que a concepção de Kierkegaard sobre o cristianismo depende da concepção de Lógica de Hegel, que a rejeição de Nietzsche à moral cristã brota de sua epistemologia darwiniana, e que a rejeição de Heidegger à ética e à política depende em parte de seu método filosófico, que ele toma de empréstimo de Husserl. Além disso, seria notavelmente pouco elucidativo provar que há uma transição contínua de Kant a Sartre discutindo seletivamente apenas aqueles problemas em que há uma transição óbvia.
O leitor que ouviu falar do existencialismo como uma filosofia moral (ou antimoral) ficará surpreso ao constatar que a maior parte dos escritos dos autores que se estudarão ocupa-se de metafísica (em sentido amplo) e não de ética. (Sartre jamais escreveu uma obra de fôlego em ética como tal; Heidegger nega que haja algo a dizer em ética para um filósofo.) Pela inter-relação dos problemas filosóficos, deve-se ver que essa ênfase na metafísica não exclui considerações morais. Ver-se-á que a própria distinção entre teoria e prática, entre metafísica e ética, é fonte de controvérsia ao longo do século XIX e início do século XX. As filosofias de Kant, Hegel e dos existencialistas não são apenas metafísicas, mas tentativas de fornecer uma visão de mundo dentro da qual um arcabouço ético já está dado. Quando Sartre e Heidegger fazem “ontologia”, não estão negligenciando problemas da “vida”. Ao contrário, e mesmo contra suas ocasionais protestações, suas ontologias são, ao mesmo tempo, concepções muito definidas do homem, das quais decorrem certas posições sobre moralidade e religião.
Uma objeção comum ao existencialismo é seu foco nos aspectos sombrios e pervertidos da realidade humana: sua fala constante de angústia, desespero, abandono; sua obsessão com as questões da solidão, da morte e do suicídio; e sua visão frequentemente pervertida do sexo, do casamento e das instituições humanas em geral. Consequentemente, acusa-se frequentemente o existencialismo de retratar o homem em seu pior estado e apresentar esse retrato degradante como se fosse a única perspectiva possível.
É verdade que o existencialismo não nos oferece a visão simples, porém otimista, do ser humano que se obtém dos utilitaristas britânicos com seu foco em maximizar a felicidade humana. Mas cumpre levar a sério a afirmação de Sartre de que “o existencialismo é a única filosofia que confere dignidade ao homem, pois é a única teoria que não transforma o homem em objeto”. Freud disse-nos que a dignidade humana sofreu três golpes insuportáveis nos tempos modernos: de Copérnico, de Darwin e dele próprio. O que deverá tornar-se evidente nos escritos dos filósofos continentais discutidos nas páginas seguintes é um forte senso de dignidade e valor humanos que começa por suplantar precisamente tais ameaças “científicas” à visão de mundo antropocêntrica primitiva do homem. Se os existencialistas se preocupam com morte, suicídio, solidão e desespero, isso não indica um quadro sombrio da realidade humana ou perda do sentimento de dignidade humana; talvez seja um retrato acurado da única direção possível na qual o amparo à dignidade humana pode prosseguir.
Não se fará, na exposição dos autores seguintes, tentativa de minimizar os elementos “abstratos” em sua filosofia e maximizar as “implicações éticas”, porque tal separação não é possível sem distorção. Na necessidade de atravessar algumas obscuridades muito árduas, portanto, deve-se manter em vista o projeto global que depende dessas obscuridades. Sartre, por exemplo, não é um filósofo moral, é um ontólogo, mas os resultados dessa ontologia devem produzir as mudanças mais revolucionárias em nossas concepções de nossos próprios códigos morais.
No que segue, buscou-se construir um esboço detalhado do desenvolvimento do existencialismo clássico a partir de suas origens racionalistas. Mas, porque se tentou demonstrar uma linha única de desenvolvimento, certas restrições devem ser explicitadas. Por exemplo, nada se disse da obra de Marcel, Jaspers e muitos outros existencialistas religiosos que não fornecem um elo essencial (se é que há tal) nessa linha de desenvolvimento. O escopo do tema também se limita ao que aqui se chama “existencialismo clássico” — culminando antes de 1945 na obra monumental de Sartre, O ser e o nada. Após 1945, Sartre volta-se cada vez mais para o marxismo e afasta-se de sua posição “clássica”. Nada se disse aqui dessa mudança de pensamento e de atitude. Mais importante ainda é o fato de que o existencialismo de Sartre é amplamente eclipsado após 1945 pela obra brilhante de Maurice Merleau-Ponty. No Capítulo 7, Merleau-Ponty foi tratado como pouco mais do que um aluno crítico de Sartre dentro dessa perspectiva anterior a 1945. Se se escrevesse um livro sobre “O existencialismo hoje”, sua filosofia seria, isto sim, o ponto de partida.
PS: SOLOMON, Robert Charles. From rationalism to existentialism: the existentialists and their nineteenth-century backgrounds. Lanham (Md.): Rowman & Littlefield, 2001.
