Romano (2018) – Uma arqueologia da autenticidade
Data: 2025-10-26 17:00
Être soi-même
Uma outra história da filosofia
* A constatação de uma revolução nas mentalidades e modos de vida desde o final da Segunda Guerra Mundial, levando ao aparecimento de um novo tipo de relação consigo caracterizado pela aspiração a dar à sua vida uma forma que reflita as suas próprias particularidades individuais.
- A democratização desta aspiração, outrora apanágio de uma elite, que se tornou um fenômeno de massa a partir do final dos anos 1960.
- A designação desta aspiração como “autenticidade pessoal”, conjugando a ideia de verdade para consigo mesmo com as de realização pessoal e expressão de si na sua vida.
* A delimitação do objeto de estudo: uma investigação sobre as raízes filosóficas, religiosas e estéticas da autenticidade pessoal, para além das abordagens sociológicas.
- O *terminus ad quem* conhecido: Rousseau como o primeiro a formular explicitamente o ideal de autenticidade pessoal.
- O aprofundamento desta ideia do Romantismo ao Existencialismo, associado a nomes como Kierkegaard, Jaspers, Heidegger ou Sartre.
- A dificuldade em identificar as fontes históricas destas concepções e a carência de estudos abrangentes sobre a questão.
* A análise do relativo descrédito dos “existencialismos” e das críticas ao ideal de autenticidade, nomeadamente a de Michel Foucault.
- A crítica de Foucault que interpreta a busca de autenticidade como um prolongamento das técnicas de confissão e de averiguação cristãs, vistas como sujeitadoras e alienantes.
- A refutação desta desqualificação: a ideia de que a aspiração a exprimir os seus verdadeiros desejos é sintoma de uma técnica de controlo é considerada absurda, pois pressupõe o que pretende controlar.
- A ambiguidade da posição de Foucault, cuja “estética da existência” parece derivar do ideal que fulmina.
* O reconhecimento de um renovado interesse pelo tema, graças a trabalhos como os de Lionel Trilling, Charles Taylor, Stanley Cavell, Charles Larmore e Bernard Williams.
- A contribuição de Taylor para reabilitar a autenticidade pessoal como um ideal legítimo e incontornável das sociedades democráticas contemporâneas.
- A afirmação de Bernard Williams: “Se há um tema que percorre todo o meu trabalho, é o da autenticidade e da expressão de si”.
* A constatação das limitações destes trabalhos, que tendem a considerar o ideal de autenticidade como algo relativamente simples e homogêneo, sem explorar a sua complexidade interna e ramificações históricas.
- A ausência de um estudo de conjunto que situe esta ideia numa longa duração, no cruzamento da história da filosofia, da espiritualidade cristã, da retórica ou da filosofia da arte.
- A antiguidade da ideia de levar uma vida de verdade, que remonta à própria filosofia, ilustrada pelo mito de Hércules na *República* de Platão e pela exortação socrática ao cuidado da alma e da verdade.
* A análise da evolução semântica das principais línguas europeias, demonstrando que a ideia de verdade “pessoal” precede a noção lógica e semântica de verdade.
- Em grego, *aletheia* remete tanto à verdade como ao hábito de dizer a verdade, à franqueza.
- Em latim, *verus* (“verdadeiro” e “verídico”) provém da raiz indo-europeia que significa “amigo, digno de fé, verdadeiro”.
- Em inglês, *true* deriva de palavras que significam “fidedigno, leal, honesto, firme nas suas promessas”.
- A conclusão: “A verdade é o lugar onde um ser coincide consigo mesmo, onde se declara no exterior tal como é no interior, antes mesmo de remeter para a adequação do pensamento com a realidade”.
* A distinção conceptual fundamental entre autenticidade e sinceridade.
- A autenticidade como uma sinceridade ou veracidade para consigo mesmo, e não para com os outros.
- A sinceridade como dizer o que se pensa; a autenticidade como *ser* o que se é.
- A ligação indissociável da autenticidade com a ideia de realização de si, de florescimento das suas próprias virtualidades.
- A citação de Goethe: “*Mache dir selber Bahn*” (“Abre tu próprio o teu caminho”) e de D.H. Lawrence: “Find your deepest impulsion, and follow that”.
* A explicitação dos pressupostos do ideal de autenticidade: o individualismo e a dignidade do indivíduo singular.
- A citação de Charles Taylor: “Existe uma certa maneira de ser humano que é a *minha*. Devo viver a minha vida dessa maneira e não imitar a dos outros.”
- A citação de Emerson: “Nenhuma lei pode ser sagrada para mim, exceto a da minha natureza.”
* A natureza mais exigente da autenticidade face à sinceridade clássica, e o problema do discernimento do que nos é próprio.
- A possibilidade de a sinceridade coexistir com ilusões sobre si mesmo, o que não é o caso da autenticidade.
- A questão de saber como é possível tal discernimento, ou se se trata antes de uma decisão pela qual o indivíduo se forma a si mesmo, “se escolhe a si mesmo”.
* O potencial conflito entre a autenticidade e outras exigências éticas, como a integridade e a justiça.
- A possibilidade de uma autenticidade no mal, ilustrada pela figura de Vautrin, que assume lucidamente as suas torpezas.
- A consequência: o “dever” de autenticidade não pode ser erigido numa exigência incondicional, num absoluto ético.
* A análise etimológica e conceptual do termo “autenticidade” e a sua ligação necessária com a verdade e a existência pessoal.
- A etimologia grega de *authentês*: “aquele que age por si mesmo”, “que tem plena autoridade sobre”.
- O vínculo necessário entre verdade pessoal e existência em pessoa: “Só aquele que existe perante os outros numa forma de verdade sobre si é também ele mesmo, ou está chamado a sê-lo”.
- A análise de Bernard Williams: a sinceridade desempenha um papel essencial não apenas na comunicação, mas na própria formação e estabilização das nossas crenças e desejos, conferindo-nos uma identidade estável.
* A refutação das críticas pós-estruturalistas e desconstrutivistas que proclamam a “morte da verdade” e a indiscernibilidade do próprio e do impróprio.
- A identificação destas posições como uma retórica de desvalorização sistemática, herdeira da estratégia sofística.
- A incoerência fundamental destas posições, que desacreditam o verdadeiro enquanto perseguem por toda a parte a impostura.
* A consideração das críticas substantivas ao ideal de autenticidade, que apontam para as suas consequências sociais negativas.
- A associação do imperativo de autenticidade a uma “cultura do narcisismo”, à erosão dos laços sociais, ao individualismo, ao hedonismo e a um “estilo de desespero” ligado à “fadiga de ser si mesmo” (Alain Ehrenberg).
- O aviso de Axel Honneth: o ideal de autorrealização foi instrumentalizado e padronizado a ponto de se inverter num sistema de exigências desumanizado.
- O risco de a autenticidade pessoal se ter tornado um logro, uma técnica de controlo ao serviço do “novo espírito do capitalismo”.
* A defesa da validade e do sentido do ideal de autenticidade, para lá das suas formas degradadas e mutiladas.
- A rejeição da redução da autenticidade ao narcisismo ou ao hedonismo.
- A afirmação de que fazer a verdade sobre si é uma empresa difícil, que exige coragem e perseverança, e pode conduzir ao sacrifício.
- A distinção entre o ideal de autenticidade e as manifestações mais superficiais do individualismo contemporâneo.
* A definição da metodologia do presente trabalho como uma “arqueologia” da autenticidade, num sentido inspirado por Foucault mas distinto.
- A arqueologia como tentativa de desenterrar possibilidades de pensamento soterradas, que continuam a subdeterminar as concepções que as suplantaram.
- O objetivo de exumar estruturas de longa duração, subjacentes ao desdobramento de um problema filosófico, cruzando diferentes tipos de discurso.
- A distinção entre uma “arqueologia centrada no arquivo” e uma “arqueologia praticando o 'questionamento em regressão' no sentido de Husserl”.
- A convicção final: “a única razão válida para praticar esta disciplina é libertar possibilidades de pensamento recobertas e suscetíveis de contribuir para a reformulação de problemas filosoficamente mal encaminhados ou conduzindo a impasses”.
PS: ROMANO, Claude. Être soi-même: une autre histoire de la philosophie. Paris: Gallimard, 2018
