Ricoeur (1991:11-14) – Si Mesmo
Data: 2023-06-22 07:30
O si-mesmo como um outro
A questão da ipseidade
Através do título O si-mesmo como um outro, eu quis designar o ponto de convergência entre as três maiores intenções filosóficas que presidiram à elaboração dos estudos que compõem esta obra.
A primeira intenção é marcar o primado da mediação reflexiva sobre a posição imediata do sujeito tal como ela se exprime na primeira pessoa do singular: “eu penso”, “eu sou”. Esta primeira intenção encontra um apoio na gramática das línguas naturais quando esta permite opor “si” a “eu”. Esse apoio toma formas diferentes segundo as próprias particularidades gramaticais de cada língua. Para além da correlação global entre o francês si, o inglês self, o alemão Selbst, o italiano se, o espanhol simismo, as gramáticas divergem. Mas essas próprias divergências são instrutivas, uma vez que cada particularidade gramatical esclarece uma parte do sentido fundamental procurado. No que se refere ao francês, “si” é logo definido como pronome reflexivo. É verdade que o uso filosófico que se faz dele no decorrer desses estudos infringe uma restrição que os gramáticos sublinham, a saber, que o “si” é um pronome reflexivo da terceira pessoa (ele, ela, eles). Essa restrição, todavia, é retirada se aproximarmos o termo “si” do termo “se”, transportando este para os verbos no modo infinitivo — dizemos “apresentar-se”, “nomear-se”. Esse uso, para nós exemplar, confirma um dos ensinamentos do linguista G. Guilherme 1), “mesmo” é empregado no quadro de uma comparação; ele tem como contrários: outro, contrário, distinto, diverso, desigual, inverso. O peso desse uso comparativo do termo “mesmo” pareceu-me tão grande, que eu consideraria daqui em diante a mesmidade sinônimo da identidade-idem e lhe oporia a ipseidade como referência à identidade-ipse. Até que ponto a equivocidade do termo “mesmo” se reflete em nosso título O si-mesmo como um outro? Só indiretamente, visto que “si-mesmo” é apenas uma forma reforçada de “si”, servindo a expressão “mesmo” para indicar que se trata exatamente do ser ou da coisa em questão (é porque quase não há diferença entre “a preocupação de si” e “a preocupação de si mesmo”, senão o efeito de reforço que acabamos de dizer). Contudo, o fio tênue que liga “mesmo” colocado após “si” ao adjetivo “mesmo” no sentido de idêntico ou de semelhante não se rompeu. Reforçar é ainda marcar uma identidade. Não é o caso em inglês ou em alemão, onde same não pode ser confundido com self, der die, dasselbe, ou gleich com Selbst, senão nas filosofias que derivam expressamente a selfhood ou a Selbstheit da mesmidade resultante de uma comparação. Aqui, o inglês e o alemão são menos fontes de equívoco do que o francês.
A terceira intenção filosófica explicitamente inclusa aqui no nosso título encadeia-se com a precedente no sentido de que a identidade-ipse emprega uma dialética complementar daquela da ipseidade e da mesmidade, isto é, a dialética do si e do diverso do si. Enquanto ficamos no círculo da identidade-mesmidade, a alteridade do diverso do si não apresenta nada de original: “outro” figura, como pudemos observar de passagem, na lista dos antônimos de “mesmo”, ao lado de “contrário”, “distinto”, “diverso” etc. Acontece exatamente de modo diferente se parearmos a alteridade com a ipseidade. Uma alteridade que não é — ou não é só — de comparação é sugerida pelo nosso título, uma alteridade tal que possa ser constitutiva da própria ipseidade. O si-mesmo como um outro sugere desde o começo que a ipseidade do si-mesmo implica a alteridade em um grau tão íntimo, que uma não se deixa pensar sem a outra, que uma passa bastante na outra, como diríamos na linguagem hegeliana. Ao “como” gostaríamos de ligar a significação forte, não somente de uma comparação — si-mesmo semelhante a um outro—, mas na verdade de uma implicação: si-mesmo considerado… outro.
