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Fernando Gil (ME:3-6) – a crença

Data: 2021-10-11 17:23

MODOS DA EVIDÊNCIA

AQUÉM DA EXISTÊNCIA E DA ATRIBUIÇÃO: CRENÇA E ALUCINAÇÃO

Fernando Gil, MODOS DA EVIDÊNCIA. Lisboa: INCM, 1998, p. 3-6

1. A minha exposição tem a sua origem no cruzamento de um dos eixos que nos é proposto — a distinção entre juízo de existência e juízo de atribuição tal como ela se apresenta em Freud — com uma ou, antes, duas questões filosóficas: a crença e a evidência. Partirei de algumas teses sobre a existência que encontramos em Kant, Husserl, Wittgenstein, para as confrontar a seguir com a doutrina freudiana do juízo. A referência a estes três filósofos será forçosamente demasiado breve, e portanto demasiado seca, mas não creio que seja mutilante.

Estas teses são convergentes e enigmáticas. Elas apontam — em vários registos de um pensamento sempre fundante e inaugural — para uma existência anterior ao modo da facticidade. O seu estatuto é, grosso modo, da ordem de uma ontologia formal que é também uma ontologia do sentido; mas ele toca (diz respeito…) também à fé. Esse estatuto recobre o modo de ser de uma alucinação que, em Freud, põe também uma entidade aquém de qualquer juízo. De certo modo, a alucinação primitiva e este pensamento da existência iluminam-se mutuamente. Permito-me acrescentar que apresento aqui um troço de uma investigação mais vasta na qual mostro que algo como a alucinação é o operador natural da evidência.

É especificamente da crença que me vou ocupar e, no meu título, autorizei-me, por isso, substituir «evidência» por «crença». A substituição da palavra não altera realmente o sentido, pois a evidência é uma forma de crença: uma crença «absoluta» à qual [3] não nos podemos esquivar. De um certo ângulo, poder-se-ia dizer também o contrário: a crença, como a evidência, não se prova, dispensar a prova é o carácter peculiar da evidência. Mas a questão específica da crença toca de um modo directo os temas do nosso colóquio.

2. Aquém do juízo de existência e de predicação existe a fé, o modo da crença «certa». Toda a modalidade da certeza, e também da dúvida, da suputação, da conjectura, remete para uma fé última e matricial. Husserl é o filósofo que formulou este pensamento na sua generalidade mais radical. «Introduzimos o termo crença-mãe (Urglaube) ou proto-doxa (Urdoxa): ele permite assinalar de um modo adequado a referência intencional […] de todas as ‘modalidades da crença’ à crença-mãe»1). Situada antes do juízo, a crença-mãe não se deixa enunciar. O seu conteúdo, como sabemos, consiste na posição pré-reflexiva, antepredicativa, do mundo. A fé primordial é a fé perceptiva, modo e modelo originários da «evidência incontestável» 2), uma evidência que é o fundamento último do conhecimento: «Podemos dizer […] que toda a actividade de conhecimento tem sempre por solo universal um mundo; e isso designa em primeiro lugar um solo de crença passiva universal no ser, que é pressuposto por toda a operação singular de conhecimento» (ibid.).

Este solo, que ecoa em todo o juízo, é um nec plus ultra: «Atingimos aqui a fonte mais profunda na qual se pode colher um esclarecimento sobre a universalidade da ordem lógica e finalmente sobre a do juízo predicativo» 3). Veremos que esta tese vale tanto para a atribuição negativa como para a afirmativa.

Também Freud postula um pano de fundo do juízo que é igualmente do domínio da fé. Esta não versa sobre a experiência antepredicativa mas é também «matricial». Ela constitui a «ficção», é o termo de Freud 4), de uma alucinação primitiva (a expressão é de Laplanche e Pontalis), anterior à esquize do objectivo e do subjectivo. [4]

Esta ficção é uma ficção transcendental. De certo modo, a alucinação primitiva dá conta da fé perceptiva husserliana. É um dos temas que queremos desenvolver, prolongando a ficção freudiana. Pois é necessário notar que a proto-doxa não é algo de absolutamente transparente. Apesar da sua força irresistível, ela revela-se assaz estranha: o que é que justifica esta «espécie de fé [sublinhado nosso] que devemos aos testemunhos do sentido» 5)? Curiosamente, a fenomenologia (penso por exemplo em Merleau-Ponty) não se preocupou em interrogar a originariedade da proto-doxa; ela aparece-lhe como um dado último que se compreendería por si mesmo, ou, por outras palavras, como uma evidência. Mas numa gênese simultaneamente transcendental e ontogenética, será necessário voltar atrás deste proton, despistar um Ur-Urglaube.

O meu tema arranca daqui. Tem por objectivo a natureza da fé. Pertence à natureza da crença o não se crer senão no verdadeiro, e aí há também algo que exige uma elucidação. A minha hipótese será a seguinte: crer na existência é o próprio conteúdo da crença e não se pode crer senão no verdadeiro porque a existência é por definição verdadeira. Todo o poder da fé radica na «reciprocabilidade» da entidade (ens) e da verdade, conformemente à doutrina medieval dos transcendentais, e é isso mesmo o que persegue de muito perto a ficção transcendental da alucinação primitiva.

Uma tal existência coloca-se atrás da categoria da existência enunciada que consta da tábua kantiana da modalidade, ao lado da possibilidade e da necessidade. Ora é ela que Kant, de certa forma, visa, na última nota dos Paralogismos da Razão Pura, ao notar que na apercepção do sujeito «algo de real […] é dado, mas apenas ao pensamento em geral, e não, por conseguinte, como fenômeno ou como coisa em si» 6). Estamos perante uma existência propriamente pré-categorial, que convém só a uma representação, o «eu penso». Com efeito, o eu penso não constitui em Kant uma vivência, mas uma representação, e é por isso que se distingue do cogito cartesiano ou husserliano: a existência («algo de real», correlato do «pensamento em geral») de que se trata é a de uma significação.

Uma existência pré-categorial, a montante do próprio juízo de existência. Husserl e Wittgenstein sugerem a mesma coisa, que Freud, como veremos de imediato, parece contestar na sua [5] análise do juízo de atribuição. O juízo de existência conduzir-nos-á contudo até este estrato, explicando além disso por que é que é assim, por que é que tem cabimento estabelecer a existência antes de qualquer juízo de existência. A fé primordial é a fé numa existência concebida segundo este modo. Um argumento ontológico (não digo uma prova!) é de certo modo inevitável a partir do mero dado da fé.

É o movimento complexo, «arcaico», sem ser «regressivo», que tentaremos apreender. Comecemos pela atribuição.

1)
Husserl, Ideen, I, trad. fr. (Idées directrices pour une phénoménologie), Gallimard, Paris, 1950, § 105
2)
Expérience et Jugement, § 7, trad. fr., P. U. F., Paris, 1970.
3)
Ideen, I, § 117.
4)
«Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques», trad. fr., in Freud, Résultats, idées, problèmes, I, P. U. F., Paris, 1984, p. 136, n. 2.
5)
Leibniz, Disc. Prél. Théod., I, § 42, cf. também Descartes, Princ. Phil., I, 72.
6)
Crítica da Razão Pura, B 422.
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