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autores:outros:de-libera-as-34-36-o-sujeito-cartesiano

De Libera (AS:34-36) – o sujeito "cartesiano"

Data: 2021-12-24 09:36

Arqueologia do Sujeito

Nascimento do Sujeito

DE LIBERA, Alain. Arqueologia do Sujeito. Nascimento do Sujeito. Tr. Fátima Conceição Murad. São Paulo: Fap-Unifesp, 2013, p. 34-36

Se não tivesse havido o-cogito-de-Descartes, sem dúvida jamais teria havido o-cogito-de-Agostinho. Mas, mais ainda, se não tivesse havido, aumentando a mira, esse objeto trans-histórico: “o”-cogito-EM-Descartes, ninguém jamais teria se interessado em “o” procurar, e naturalmente em “o” encontrar em estado nascente nesse outro: “o”-cogito-EM-Agostinho. Procurar o primeiro/último domicílio conhecido de um conceito sem domicílio fixo não é verdadeiramente a tarefa do historiador. Assim como “o” cogito, “o” sujeito “cartesiano”, seu irmão siamês, não existia antes que filósofos pós-cartesianos o introduzissem em Descartes. O mesmo se pode dizer “do” sujeito “pré-cartesiano”. Uma arqueologia do sujeito deve, portanto, “traçar” dois produtos distintos, um na história, outro na historiografia: a entrada do sujeito na filosofia, de um lado, e a invenção da figura do sujeito, de outro, evitando confundir o trajeto efetivo de um com as etapas inventadas na projeção retrospectiva do outro. Tarefa difícil, pois, evidentemente, tudo se atrela, e a criação moderna “do” sujeito “cartesiano” tem alguma coisa a ver com Descartes. O que exatamente? Essa é a questão.

Não poderíamos dizer no momento quem dos Modernos falou pela primeira vez de “sujeito” lendo ou discutindo Descartes. Certa página de Henri Gouhier dá a entender que Maine de Biran poderia ter introduzido a expressão “sujeito psicológico” a propósito do cogito 1). Mas é certo que o autor do Ensaio sobre os Fundamentos da Psicologia foi um dos primeiros a inquirir o processo cartesiano da res cogitans, quer se trate de estigmatizar um erro categorial fundado em uma simples identidade lógica (“altera-se a verdade do fato ao transformar, por uma identidade lógica, o eu atual no ser ou a alma coisa, tomada como a coisa pensante” 2)), de denunciar o recurso à ideia de substância, incompatível com a de ação ou de atividade (pois a substância é “sempre concebida sob uma relação de passividade” 3)), ou de combinar as duas críticas imputando-lhe uma incapacidade de expressar a individualidade do “sujeito” real. Supondo-se que não houvesse nenhuma menção ao “sujeito” em Descartes, é forçoso constatar que havia o suficiente para seu adversário imputar por isso mesmo ao cartesianismo uma maneira de recuo diante de sua própria descoberta. Como diz, de fato, a monografia sobre A Ideia de Existência:

Descartes teve evidentemente a intenção de buscar seu ponto de partida no sujeito tal como ele existe; mas, levado pelas formas da linguagem, ele expressa a individualidade precisa do sujeito sob o termo universal apelativo de um objeto indeterminado: daí todas as ilusões lógicas e físicas nascidas do princípio ou da forma de seu enunciado 4).

Como se vê, não basta dizer que “o” sujeito “cartesiano” é um produto da leitura moderna de Descartes: o que é preciso dizer, e antes de tudo ver, é que a própria noção de “sujeito” é um operador meta-histórico que permite inscrever o cartesianismo em um processo de longo prazo, demarcar seus limites e diagnosticar seu erro. No fundo, não é muito importante para nós, nesta fase, saber se Maine de Biran foi ou não o primeiro a inscrever as Meditações na órbita do “sujeito”: mais decisivo é o tom de serena familiaridade com que ele usa tal vocábulo, e a intimidade que ele supõe na relação de Descartes com seu próprio ponto de partida, como se o cartesianismo se tivesse pretendido de antemão, originária e naturalmente, uma psicologia “do” sujeito, e seu único erro fosse o de não ter conseguido constituir-se como tal. Um etnólogo diria que a ciência social do observado é eclipsada aqui pela do observador. Será que estaremos quites, então, ao afirmar, como filósofos sensatos, que o termo sujeito pertence à metalinguagem histórica antes de pertencer à linguagem objeto a que é aplicada? Com certeza não. A tese é justa, mas incompleta. É preciso ir mais longe na abstração, e tratar o sujeito da metalinguagem histórica como fazendo parte da linguagem objeto da arqueologia: “traçar”, como se disse, dois processos, duas histórias entrelaçadas uma à outra. Para fazer isso, é preciso dispor de ferramentas arqueológicas. Proporemos três. A primeira - a subjetividade - tomaremos de empréstimo a Heidegger. A segunda - o atributivismo - à interpretação analítica de Aristóteles. A terceira - o atributivismo - precisa ainda ser forjada.

1)
Cf. H. Gouhier, Essais sur Descartes, p. 214: “O eu do cogito é […] um sujeito psicológico, como dizia Maine de Biran, mas em um sentido mais biraniano do que ele supunha”.
2)
Maine de Biran, Essai sur les fondements de la Psychologie, VIII, p. 125.
3)
Idem, ibidem, pp. 222-223.
4)
Maine de Biran, De l’idée d’existence, p. 40. Muito tempo antes de Heidegger, portanto, Maine de Biran formulou a crítica que Ser e Tempo instala no centro de sua “destruição” do cartesianismo: a objetivação (coisificação) do sujeito. Como se verá, encontra-se a mesma crítica em Husserl.
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