autores:marion:marion-1998-etant-donne-preliminares
Marion (1998) – "Étant donné" (preliminares)
Data: 2025-10-28 19:05
Étant donné
Réponses préliminaires
- A compreensão espontânea e erudita da expressão “étant donné”, que insere um artigo para ler “l'étant donné”, interpretando “étant” como um substantivo que se refere ao “ente” dos filósofos, concluindo assim que o que existe se encontra também dado, reduzindo a fórmula à afirmação metafísica de que há ente em vez de nada.
- A incoerência exposta por esta leitura comum, que, ao admitir que o ente é dado, não explica a justaposição dos termos “étant” e “donné” sem artigo, cópula ou transição, levantando a questão de se “donné” equivaleria banalmente a “est donné” e se “étant donné” seria apenas uma glosa da tautologia “o ente – aquilo que – é”, o que tornaria o termo “dado” supérfluo e impreciso, fazendo com que esta leitura multiplique “étant” e esqueça inteiramente “donné”.
- A necessidade de abandonar a leitura espontânea e erudita para ler “étant donné” como ele se apresenta: sem artigo, onde “étant” deve ser tomado como um verbo auxiliar que trabalha para outro verbo, preparando e realizando o que, no final, se mostra como “dado”.
- A afirmação de que “étant donné” indica que o dado já se deu de forma irrevogável, de modo análogo a como “étant fait” afirma que o fato se fez, “étant acquis” que o adquirido está definitivamente adquirido, ou “étant dit” que o dito tem o estatuto de promessa.
- A função de “étant” como auxiliar que prepara “donné”, conferindo-lhe a força de um fato consumado, e que se deposita inteiramente no “dado”, desaparecendo nele para atestar a sua dação.
- A descoberta do dado como um dado que não deve nada a ninguém, dado enquanto dado, que se ordena à doação e nela emprega o “étant”, conquistando assim a sua doação e fazendo com que o ser verbal desapareça ao se cumprir.
- O desdobramento verbal, no dado, da sua própria doação, o que se nomeia como “o pli du donné” (a dobra do dado), onde o ser auxiliar se coloca a serviço da doação.
- A retomada da questão colocada na obra “Réduction et donation. Recherches sur Husserl, Heidegger et la phénoménologie” de 1989, que inicialmente se pensou ser um mero exame histórico do desenvolvimento do método fenomenológico.
- O exame do surgimento da redução na objetidade em Husserl, da virada da redução para a entidade para aceder ao ser do ente para o Dasein em Heidegger, e da possibilidade de radicalizar a redução pura ao dado como tal.
- A aparente banalidade da leitura dos textos canônicos que impunha esta trajetória, e a surpresa perante o privilégio concedido à doação, que poderia ser vista como uma simples tradução de um conceito reduntante em Husserl, a “[Gegebenheit→/spip.php?page=search_definitions&search=Gegebenheit]”.
- A defesa de que a possibilidade de aceitar este conceito deveria depender das exigências da própria coisa e não de etiquetas de pensamento ou modas ideológicas.
- A possibilidade de uma “terceira redução”, específica e ordenada ao puro dado, uma vez que a redução transcendental de Husserl se joga no horizonte da objetidade e a redução existencial de Heidegger no horizonte do ser.
- O equívoco dissipado pelo debate que a obra “Réduction et donation” suscitou, com as suas reações positivas e negativas, que provou que nela se haviam avançado teses mais pesadas do que inicialmente se imaginara.
- O reconhecimento da dívida e gratidão para com aqueles que, através de acordos, desacordos e equívocos, indicaram os verdadeiros desafios e novas dificuldades que exigiam uma decisão.
- A enumeração das interrogações que o presente trabalho tenta responder, organizadas em seis pontos principais que estruturam a obra.
- A tematização do novo princípio “Autant de réduction, autant de donation” (“O quanto de redução, o quanto de doação”), mais adequado e último para a fenomenologia, que conduziu a uma nova definição, mais ampla e elementar, do fenômeno como dado, e o projeto de deduzir e articular todos os caracteres do fenômeno a partir desta determinação.
- O questionamento radical sobre o caráter dado do dom, perguntando se ele pode conceber-se como dom sem aniquilar todo o conteúdo, todo o ator e toda a intriga, e a distinção essencial proposta entre a doação fenomenológica do dado e a temática comum do dom.
- A discussão sobre o possível retorno a uma “metafísica especial” que a doação implicaria, supostamente ao supor um doador transcendente ou mesmo teológico, e a questão mais essencial sobre a possibilidade de desdobrar a doação no quadro da imanência reduzida.
- A interrogação sobre a natureza da terceira redução e se ela ainda se cumpre no campo da fenomenologia ou se a poderia subverter ou perder, com a tentativa de estabelecer que ela permite pôr em cena os fenômenos enquanto tais, reconduzindo-os ao seu estatuto de puro dado com determinações radicalmente não metafísicas.
- A capacidade da redução da fenomenalidade à doação para descrever fenômenos excepcionais, ignorados ou excluídos pela metafísica e pela fenomenologia anterior: os fenômenos saturados de intuição, nomeados como paradoxos.
- A determinação do fenômeno como dado, que pode e deve dispensar todo o doador, mas que advém sempre a um donatário, descrito como “o adonné”, sem outro “subjectum” que não a sua aptidão para receber e se receber daquilo que recebe.
- A defesa do tema único de que o fenômeno, que se define como aquilo que se mostra em si e de si mesmo, só pode atestar-se na medida em que primeiro se dá.
- A crítica ao pensamento que não reconhece o dado, tornando-se impotente para receber muitos fenômenos pelo que são – dados que se mostram – e excluindo do campo da manifestação não só muitos fenômenos, mas sobretudo os mais dotados de sentido e os mais poderosos.
- A afirmação de que só uma fenomenologia da doação pode voltar às coisas mesmas, porque para a elas voltar é preciso primeiro vê-las, logo, vê-las vir e, por fim, suportar a sua chegada.
- A disputa de duas questões remanescentes: a relação da fenomenologia com a metafísica e a abordagem do fenômeno da Revelação.
- A assunção de que a fenomenologia se escapa da metafísica, mas com a ressalva de que Husserl guarda decisões kantianas e Heidegger guarda a subjetividade no Dasein e o privilégio da questão do ser, levando a admitir que a fenomenologia não supera de facto a metafísica, mas abre a possibilidade de direito de a deixar a ela mesma.
- A tese de que a fronteira entre metafísica e fenomenologia passa no interior da fenomenologia como a sua mais alta possibilidade, e que a via fenomenológica ainda não atingiu o seu termo.
- A defesa da descrição dos fenômenos saturados ou paradoxos, incluindo o fenômeno da Revelação, nomeadamente o Cristo, contra a acusação de um volteio teológico indevido, por duas razões principais.
- A primeira razão: todo o fenômeno deve poder ser descrito e toda a exclusão de princípio volta-se contra quem a exerce, sendo que o próprio conceito de Revelação pertence de pleno direito à fenomenalidade e deve ser considerado mesmo para o contestar.
- A segunda razão: a abordagem da Revelação não é feita na sua pretensão teológica à verdade, mas esboçada como uma possibilidade da fenomenalidade, o paradoxo dos paradoxos, tal como se realiza no caso de um eventual fenômeno saturado, sendo que a sua descrição não faz exceção ao princípio da redução à imanência.
- A comparação com os fenômenos que Husserl pensava poder descrever apenas por variações imaginativas, cuja simples possibilidade merece análise e “Sinngebung”.
- A afirmação de que o relacionamento entre uma fenomenologia a edificar e o facto da Revelação não difere fundamentalmente do relacionamento que a filosofia enquanto tal mantém com ela, e que hoje não se está em condições de sequer colocar essa questão.
- A reafirmação do tema único: “o que se mostra, primeiro se dá”, e a tentativa de o manter e orquestrar ao longo de todo o trabalho, sem sustentar qualquer outra tese implícita ou esotérica.
- O apelo ao leitor benevolente para evitar equívocos, afirmando que se quer dizer o que se tenta dizer e não o inverso do que se disse, exemplificando com três pontos: a doação reduzida não pede um doador, mas também não insinua um doador transcendente; a fenomenologia da doação ultrapassa a metafísica, mas não a restaura; a oposição do “adonné” à subjetividade transcendental não sugere o renascimento do “sujeito” na doação.
- O reconhecimento de que tais equívocos provêm da dificuldade intrínseca das questões abordadas e das próprias insuficiências ou ignorâncias do autor.
- A consciência da inadequação do ensaio face ao que é preciso pensar, expressa pela citação de Bembo: “e per piú non poter fo quant' io posso” – “e não podendo mais, faço o quanto posso”.
- A esperança de que outros irão mais longe, pois a fenomenalidade do dado vale mais do que o que sobre ela se diz e ela o fará ver, já que o que o livro consegue dizer fica aquém do que se concebeu sem o poder formalizar, e o que se concebeu fica, por sua vez, muito aquém do que se viu.
PS: MARION, Jean-Luc. Étant donné: essai d’une phénoménologie de la donation. 2e. ed. Paris: PUF, 1998
/home/mccastro/public_html/fenomenologia/data/pages/autores/marion/marion-1998-etant-donne-preliminares.txt · Last modified: by 127.0.0.1
