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Luijpen (1973:395-397) – Ser para Deus?

Data: 2024-11-19 06:31

Entre os comentaristas de Heidegger, perdurou por longo tempo a incerteza quanto a saber-se se o filósofo, de acordo com seu sistema, deve ser chamado ateísta ou não. Sartre denomina-o representante do existencialismo ateu, mas não se dá ao trabalho de indicar as razões que o induziram a resolver uma questão que tanto preocupou a muitos comentadores.1) Porém, as obras de Heidegger posteriores ao Ser e Tempo mostram que Sartre não tem razão.

Neste ponto, Heidegger precisa defender-se contra os maiores mal-entendidos. Por ter ele designado existência a essência do homem, alguns de seus críticos imaginaram que quis fazer o homem tomar o lugar de Deus,2) visto que a metafísica tradicional concebia a essência de Deus como existência e Heidegger chama assim a essência do homem.3) Não se viu, ou não se quis ver, que para ele o termo “existência” exprime precisamente o modo específico do ser do homem, distinto do modo de ser de uma coisa ou de Deus. A intenção do filósofo era indicar claramente que em nosso pensamento não podemos divinizar o homem, dado que o ser do homem é um ser-no-mundo, o que não se há de afirmar de Deus de modo algum. “Deus é, mas não existe”.4)

Para alguns representantes do existencialismo e da fenomenologia, contudo, a maneira como denomina o homem “existência” constitui o fundamento direto de seu ateísmo. Já mencionamos que aqueles que definem o homem como puramente ser-no-mundo cortam a priori a possibilidade de chamar o ser do homem também um “ser para Deus”.5) Ora, é digno de nota que Heidegger denomine, de fato, o homem um ser-no-mundo, mas que nunca tenha asseverado não ser ele outra coisa senão isso. Ao contrário, segundo Heidegger, pela interpretação do homem como ser-no-mundo ainda não se decidiu, nem positiva nem negativamente, a possibilidade de um “ser para Deus”, mas abriu-se a possibilidade de formular a questão do eventual relacionamento do homem com Deus.6)

Entretanto, uma eventual relação do homem com Deus não será ilusória, já que ficou estabelecido que o ser-no-mundo não tem sobre si uma instância superior à morte?7) Para K. H. Roessing, a teoria heideggeriana da morte indica que o filósofo não reconhece um “mundo superior”.8) A conclusão, porém, não procede. Pode-se bem conceder a Heidegger que a morte é a suprema instância do ser-no-mundo. A questão toda é se o homem se resume em seu ser-no-mundo. Se o ser do homem se deve denominar também um ser-acima-do-mundo, a morte é e fica sendo a suprema instância do ser-no-mundo, mas não do ser-homem integral. Em parte alguma Heidegger adianta que o ser-homem se esgota com o ser-no-mundo. Em nenhuma passagem, portanto, exclui que o sujeito, entendido como intencionalidade funcionante, seja a “afirmação” do Absoluto Transcendente. Jamais o filósofo formulou explicitamente esse aspecto do sujeito existente, visto que primeiro quis preparar o terreno que possibilite qualquer autêntica afirmação.

Uma vez que a preocupação de Heidegger consiste no preparo de tal terreno, acha muito difícil, se bem que não impossível, a reflexão sobre o caminho para Deus. Ela será achada de novo quando o pensamento tiver encontrado sua dimensão própria, ou seja, quando se tiver desenvolvido como um pensamento da “verdade do ser”. “Somente a partir da verdade do ser será possível o ‘acontecer’ (a essência) do sagrado; somente a partir do ‘acontecer’ do sagrado pode pensar-se o ‘acontecer’ da ‘divindade’; somente na luz do ‘acontecer’ da ‘divindade’ pode ser pensado e dito o que a palavra ‘Deus’ pretende significar”.9) Como o pensamento deve preparar um “lugar” para o “acontecer” do ser, onde o homem seja sensível ao “chamamento do ser”, e como, em outras palavras, o homem deve primeiramente reencontrar o alcance de sua própria essência a fim de que a verdade do ser possa “acontecer”, cumpre também que o homem ache primeiramente a dimensão do “acontecer” do sagrado, antes de esperar pensar ou dizer alguma coisa sobre o que significa a palavra “Deus”. Heidegger presume que a reflexão sobre a religiosidade pode constituir o caminho do pensamento para Deus.


PS: LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973

1)
Sartre, J.-P., L’Existencialisme est un Humanisme, Paris, 1954. (Cf. trad. port. de Vergílio Ferreira: O Existencialismo é um humanismo, 2.a ed. [Lisboa], Presença [s. d.])., p. 17.
2)
T. Ando, Metaphysics, A critical survey of its meaning, The Hague, 1963, p. 107.
3)
“O cúmulo da confusão seria, contudo, pretender explicar-se a frase sobre a ecsistente essência do homem como se fosse a transposição secularizada, para o homem, de uma ideia que na teologia cristã se aplica a Deus (Deus est suum esse)”. M. Heidegger, Über den Humanismus, pp. 16-17.
4)
M. Heidegger, Was ist Metaphysik? [GA9], p. 15.
5)
“Mas se reencontramos o tempo sob o sujeito, e se ligamos ao paradoxo do tempo os do corpo, do mundo, da coisa e de outrem, compreenderemos que não há nada a compreender além disso”. Merleau-Ponty, Phénoménologie de la Perception, p. 419.
6)
“Pela interpretação do ser-aí como ser-no-mundo, nada fica decidido, nem positiva nem negativamente, acerca de um possível ser para Deus. Mas, pelo esclarecimento da transcendência, adquire-se pela primeira vez um conceito suficiente do ser-aí, por meio do qual se pode agora perguntar como se põe ontologicamente a relação do ser-aí com Deus”. M. Heidegger, Vom Wesen des Grundes [GA9], Frankfurt a. M. 1949, p. 39, nota 56.
7)
Heidegger, M., Sein und Zeit, 6.a ed., Tübingen, 1949., p. 313.
8)
K. H. Roessing, Martin Heidegger ais Godsdienstwijsgeer, Assen, 1956, p. 149.
9)
M. Heidegger, Über den Humanismus [GA9], pp. 36-37.
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