Vancourt – Imediato e Fenômeno
Data: 2024-11-18 14:43
Muito mais que volta ao imediato, fala-se agora de volta aos fenômenos, às coisas, ao vivido. Mas estas expressões recebem muitas vezes um significado que as aproxima singularmente do imediato bergsoniano. É o que acontece com esta fenomenologia que habitualmente é qualificada de existencialismo1). Merleau-Ponty reconhece-o expressamente: “A metafísica (para Bergson) seria, antes, a exploração deliberada deste mundo do que o objeto da ciência, a que a ciência se refere tacitamente. Sobre estes pontos, parece-nos ter perfeitamente definido a aproximação metafísica do mundo”2). E quando se trata de descrever a volta às coisas, ao fenômeno, ao vivido, Merleau-Ponty emprega expressões que tomam incontestavelmente um tom bergsoniano: “Voltar às coisas, escreve ele, é voltar a este mundo anterior ao conhecimento, de que o conhecimento sempre fala e em face do qual toda determinação científica é abstrata, figurativa e dependente, como a geografia em face da paisagem onde aprendemos o que é uma fonte, um prado, uma floresta3). E ainda: “O primeiro ato filosófico seria pois voltar ao mundo vivido, aquém do mundo objetivo, pois é nele que podemos compreender o direito e os limites do mundo objetivo. Podemos dar às coisas sua fisionomia concreta, aos organismos sua maneira própria de tratar o mundo, à subjetividade sua inerência histórica. Podemos reencontrar os fenômenos, a esfera da experiência viva através da qual o outro e as coisas nos são dados primeiro, o sistema eu-o-outro-as-coisas no seu estado primitivo. Despertar a percepção e anular a astúcia, pela qual ela se deixa esquecer como fato e percepção, em proveito do objeto que nos dá e da tradição racional que estabelece”4). O fenômeno, assim como o imediato, é o conjunto das relações vividas do homem com o universo, sobre as quais se constitui a relação de conhecimento com o que ele implica de “coisismo” e de utilitarismo, de conceitualismo e de “coisificação”.
Devemos colocar-nos aquém do conhecimento para redescobrir-lhe a fonte e o substrato. Os poetas proclamam-no, e são os primeiros a pregar a volta ao imediato, ao vivido. É por isso que a metafísica nunca deixou de levar uma vida ilegal em literatura, pois “a metafísica não é necessariamente a associação factícia dos números. Rimbaud sentiu-o mais vivamente do que os outros; ele viu as coisas em si, as flores em si”5). Bergson e Le Roy já haviam insistido, antes de Merleau-Ponty, sobre a analogia que existe entre a caminhada do filósofo e a do artista. De ambas as partes, um mesmo trabalho de purificação e de ascese é requerido para ultrapassar a visão utilitária e obter uma visão mais íntima e mais verdadeira da realidade. É a percepção primitiva que os surrealistas, com Bergson e os fenomenólogos esperam ressuscitar, quando acima da razão e da linguagem com sua contextura lógica, eles pretendem liberar um mundo de imagens, atingir a atividade humana na sua fonte, “bater às portas da criação”, atingir as profundezas do ser e do inconsciente6). Há aí talvez, alguma coisa de inquietante. Não se poderia pensar que o filósofo se compromete, caminhando com o poeta e o artista? Talvez seja indispensável precisar o ponto em que os caminhos divergem. Mas antes de insistir sobre as diferenças, deve-se notar os pontos de contato, fazer ver como a filosofia contemporânea tem, como a poesia, sede de realidade vivida, original e originária, concreta, individual.
Esta preocupação do concreto, nós a encontramos em numerosos autores contemporâneos: Gabriel Marcel e Gaston Berger, por exemplo, para citar apenas filósofos de língua francesa. G. Marcel, desde o início de sua pesquisa metafísica formula o problema do vivido em função do sistema hegeliano. Proclama, depois de Hegel, que o pensamento que em seus primeiros passos, se caracteriza por seu imediatismo e o de seu objeto, “se mediatiza em seguida a si próprio, mediatizando o “dado”7)”. Esta mediatização não deve fazer esquecer o primado do concreto, e Gabriel Marcel acha, com razão, que a doutrina hegeliana, apesar das aparências, respeitou, até certo ponto, este primado. Para encontrar o vivido, deve-se primeiro tomar conhecimento da deformação que o conhecimento objetivo e o juízo em particular, fazem o real sofrer, introduzindo-lhe uma dissociação na realidade viva e indivisa8). Deve-se, em seguida, corrigi-la, restaurando o contato direto com o dado primitivo. Mas de que natureza era este contato? Num vocabulário um pouco diferente, Marcel parece interpretá-lo do mesmo modo que Merleau-Ponty. Trata-se de uma presença maciça, irrecusável, indivisível do homem no mundo. De uma presença sensível que é o fato de uma consciência encarnada, de um corpo humano ligado ao real por uma multidão de laços concretos, bem antes que o conhecimento os tenha interpretado. Mas a maneira como ele a define: um imediato puro, uma participação que nos imerge na totalidade do universo, mostra claramente que ela significa para ele quase a mesma coisa que a percepção para Merleau-Ponty ou a “percepção primitiva” para Le Roy. Trata-se sempre da “presença total” do homem a uma realidade que “já existe” e de que obtenho uma certeza inabalável. A experiência do ser não consiste apenas em me atingir a mim mesmo num cogito insular, mas em me atingir ao mesmo tempo que o mundo e no meu contato vivido com ele. Este contato é ambíguo, apresenta-se como a obra de uma consciência encarnada, que é ao mesmo tempo carne e espírito. O ser não me é dado numa experiência angélica, antes, numa relação exclusivamente carnal, do gênero da que o animal pode contrair com o universo. Se falamos de experiência metafísica, devemos frisar que se trata aqui da apreensão do ser pelo homem, isto é, por um ser existente cuja natureza é mista e que se apodera do ser num ato em que se unem misteriosamente a consciência e o corpo. Este apoderar-se imediato, maciço, e primitivo, esta ligação fundamental do homem com a realidade, constitui a base sobre a qual se vai edificar todo o resto9). Devemos, aliás, evitar concebê-la como totalmente irracional, pois que ela é suscetível de ser pensada, interpretada, analisada pelo homem. Mas para que o trabalho de análise não seja viciado, devemos encontrar esta relação original no estado puro, tentar ressuscitá-la na sua ingenuidade primeira10). — Não temos o direito de concluir que a noção de vivido, de concreto, de “individual” que sempre volta à pena de G. Marcel é vizinha do que Merleau-Ponty chama o fenômeno?
Esta semelhança se confirma pelo fato de que, tanto para G. Marcel como para Marleau-Ponty, surge um problema idêntico que devem logo resolver se quiserem conferir um significado preciso ao vivido e ao fenômeno. O vivido, o fenômeno, dizíamos, é a presença maciça e original da consciência encarnada no mundo. Desde que não se trata de consciência puramente espiritual, o homem não se pode reduzir ao pensamento. Ele é outra coisa, uma realidade ambígua, pesada e opaca. O mundo lhe é dado na sensação ou na percepção — pouco importa o termo — isto é, num contato vivo em que o organismo tem um papel” insubstituível. Por outro lado, o mundo “já existe”e meu corpo deve simplesmente entrar “em simpatia com as coisas”, aderir à existência, segundo as fórmulas de Rilke, consentir na vida em sua totalidade. Tudo isso não nos leva inelutavelmente a uma atmosfera realista, sobretudo porque, G. Marcel como Marleau-Ponty reage vigorosamente contra as diversas formas de idealismo? Em geral os filósofos contemporâneos não se limitam a opção: realismo ou idealismo. Consideram caduca tal controvérsia. Querem ultrapassar as posições contrárias, ficar aquém, ou além. Será isto possível? Não devem eles obrigatoriamente tomar partido, sob pena de deixar a noção de vivido e de fenômeno numa perigosa ambiguidade?
Se por realismo entendemos simplesmente o realismo vulgar do senso comum, isto é, a afirmação de um mundo de “coisas” independente de nosso espírito, podemos dizer, então, que a doutrina dos fenomenólogos e dos existencialistas o ultrapassa. Eles querem ir além do universo dos objetos constituídos, até a fonte onde se elabora este universo, até o fundo primitivo com o qual se constroem os objetos e as coisas. E se admitíssemos um realismo da ciência11) teríamos de formular a mesma observação. É o próprio alicerce sobre o qual repousa a ciência que os fenomenólogos se esforçam por atingir. Mas, se o mundo em que estou presente, com uma presença indissoluvelmente espiritual e carnal, “já existe”, se me vejo na impossibilidade de o reproduzir no pensamento que tenho dele, então está salvaguardada a tese essencial do realismo. Não se define ele precisamente por esta impossibilidade de reduzir o ser à consciência? Sem dúvida sou eu mesmo que, pela sensação ou pela percepção, faço surgir um mundo para mim, faço que haja um tal mundo. Mas este mundo se apresenta ao mesmo tempo como não sendo eu, como possuindo sua consistência própria. E é justamente o milagre da existência humana: ela suscita um universo que, logo sentimos, ultrapassa e excede nosso pensamento. Não há também, necessidade de se recorrer a uma demonstração da existência do mundo exterior. Descartes extraviou-se aí e arrastou os filósofos numa direção que poderia levar a um impasse. O realismo “mediato”, “problemático”, é uma posição insustentável, e enquanto os fenomenólogos e os existencialistas querem apenas ultrapassá-la, concordamos com eles. Mas devemos acrescentar que a filosofia grega — mesmo a platônica — e o tomismo, nunca acharam necessário demonstrar a existência do mundo exterior. Admitiram que ele era dado numa experiência incontestável, que fazia intervir, de nossa parte, tanto o corpo quanto a alma, pois o homem realiza uma presença carnal no mundo. Não é, tudo isto, realismo? Ainda que se objete que o pensamento contemporâneo, voltado para a dialética, não quer isolar o mundo da consciência, nem a consciência do mundo e afirma, no ponto de partida, sua “coordenação principal”, não veremos aí uma dificuldade insuperável. É evidente que o mundo só existe para mim pela consciência que tenho dele, e que a consciência só surge como consciência do mundo. Todo o problema consiste em saber se, na experiência que faço do mundo, ele não me aparece como já existindo, excedendo-me de todos os lados, e se enfim, esta transcendência que lhe atribuo não é mais do que uma transcendência simplesmente pensada. Se a reduzíssemos a isto, voltaríamos ao idealismo. Fenomenólogos e existencialistas não o admitem. Isto porque eles professam um realismo que, no seu aspecto essencial, é singularmente vizinho, por exemplo, do realismo tomista. Repousa, como este último, na experiência imediata que a consciência encarnada faz ao mesmo tempo de seu próprio peso e do peso do universo. Sem dúvida, a filosofia contemporânea insiste muito sobre a necessidade de ressuscitar, na sua originalidade primeira, nosso contato vivido com o real; de libertá-lo de construções ulteriores edificadas sobre os dados primitivos; de nos fazer, assim, assistir ao nascimento destas construções. Mas este dado, mesmo encontrado na sua pureza, deve ser interpretado de modo realista ou idealista. Não há meio termo. Não basta dizer que falar de dado, já é afastar-se do idealismo, pois sabemos que a noção de dado pode ser integrada no mais rígido idealismo, tal como, por exemplo, o idealismo lógico. É preciso escolher uma explicação. É tão necessário que, se não o fazemos, arriscamo-nos a deixar na ambiguidade as noções de dado, de vivido, de concreto, de imediato e particularmente as de fenômeno e de “constituição”, que já são confusas por si mesmas, como veremos.
PS: R. Vancourt, A Estrutura da Filosofia
