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Greisch (2001) – "Poder se lembrar"

Data: 2025-11-03 21:27

Paul Ricoeur, l’itinérance du sens

Uma Fenomenologia da Memória

A análise dos fenômenos memoriais que Ricœur desenvolve na primeira parte de A memória, a história, o esquecimento obedece a uma ordem muito precisa, balizada pelo jogo das três partículas interrogativas: “o quê, como, quem?”. Do mesmo modo que, em O homem falível, Ricœur iniciara sua investigação decifrando os indícios da falibilidade na síntese transcendental, isto é, na própria constituição do objeto de conhecimento, aqui também ele parte do “momento objetal” (MHO 4) da memória, ou seja, da lembrança, ou melhor, do plurale tantum das lembranças que se apresentam a nós como dados, agradáveis ou desagradáveis, em todo caso irrefutáveis. Essa escolha deliberada de conceder prioridade à questão intencional (“de que há lembrança?”) sobre a questão egológica (“de quem é a memória?”) (MHO 3) é, evidentemente, carregada de consequências. —-

#### “Poder se Lembrar”: Uma Fenomenologia da Memória

* A análise dos fenômenos da memória, que Ricœur desenvolve na primeira parte de A Memória, a História, o Esquecimento (*MHE*), segue uma ordem precisa, pautada pelas perguntas “o quê, como, quem?”. * A investigação começa com o “momento objetivo” (*MHE 4*) da memória, ou seja, com os suvenires (lembranças), que se apresentam como dados irrefutáveis (agradáveis ou desagradáveis), espelhando o início da *A Falibilidade do Humano* na síntese transcendental. * A prioridade intencional (a pergunta “de que há lembrança?” ou “de que se lembra?”) sobre a pergunta egológica (“de quem é a memória?”) (*MHE 3*) é uma escolha com consequências significativas.

* a) De que se Lembra? Uma Fenomenologia da Lembrança

  • A análise intencional tem o mérito de prevenir contra a tentação de reduzir a memória ao domínio da imaginação.
  • Essa abordagem preserva a diferença eidética entre duas visadas intencionais irredutíveis: a da memória, que visa a anterioridade, e a da imagem, que visa a ficcionalidade.
  • A principal dificuldade é compreender a função propriamente temporalizante da lembrança, refletida no enunciado de Aristóteles: “a memória é do tempo,” o qual Ricœur adota como estrela guia de toda a sua investigação.
  • Aristóteles pavimenta o caminho para a fenomenologia da memória ao convidar à descrição dos fenômenos mnemônicos com foco nas “capacidades das quais eles constituem a efetuação 'feliz'” (*MHE 26*), e não nas deficiências ou falhas da memória.
  • O que se procura é pensar uma “memória feliz” ou “saudável,” cuja imagem adquire novas valências no decorrer da análise, representando as diversas facetas da capacidade fundamental de se lembrar.
  • A tarefa específica da fenomenologia da memória é dar conta das múltiplas formas pelas quais o “ser-do-passado” pode se manifestar.
  • Essa tarefa apresenta um aspecto fragmentado, mas possibilita a constituição de uma tipologia baseada nas perguntas “de que se lembra?”, “como se lembra?” e “quem se lembra?”.
  • Mesmo a análise dos noemas (o conteúdo da lembrança) impõe a introdução de diferenças na multiplicidade dos suvenires.
  • Há uma questão sobre a ênfase a ser dada: nos eventos singulares e não repetíveis (como enfatiza Claude Romano em sua “hermenêutica eventuária”) ou nas semelhanças típicas entre fatos e objetos que tornam possível a “orientação” e o “reconhecimento”.
  • Ao considerar as formas como a lembrança adere (ou não) ao passado, Ricœur evidencia várias polaridades oposicionais importantes, a começar pela polaridade bergsoniana da “memória-hábito” e da “memória-lembrança”.
  • Em segundo lugar, adiciona-se a polaridade da evocação e da busca, que opõe os suvenires espontâneos (incluindo seu substrato cortical) ao “esforço de memória” (que pode ir da perlaboração freudiana, superando resistências como a compulsão de repetição, até as performances atléticas, ainda que vãs, da antiga *ars memoriae*).
  • Neste estágio inicial, a distinção husserliana entre “lembrança primária” (“retenção”) e “lembrança secundária” (“recordação,” “reprodução”) é preponderante, pois ancora solidamente a fenomenologia da memória na fenomenologia da consciência íntima do tempo, endossando a tese aristotélica.
  • Este ancoramento temporal é arriscado, pois parece confirmar o privilégio do “presente vivente,” criticado por Jacques Derrida em *A Voz e o Fenômeno* como o cerne da fenomenologia husserliana.
  • Para Ricœur, a noção de “presente vivente” tem múltiplas faces que não se resumem ao ato de percepção (lugar primordial da doação “em carne e osso”) e que, *a fortiori*, não se subordinam à ideia de “metafísica da presença”.
  • A iniciativa (já discutida no capítulo 7), a fruição e o sofrimento são aspectos desse presente, sendo fundamental para a fenomenologia hermenêutica reconhecer que “a fenomenologia da percepção não tem… nenhum direito exclusivo sobre a descrição do presente. O presente é também o do fruir e do sofrer e… presente de iniciativa” (*MHE 40*).
  • A fenomenologia da lembrança é concluída com a introdução de uma terceira polaridade: a da reflexividade e da mundanidade.
  • Seguindo Edward S. Casey, Ricœur explora o vasto intervalo entre os atos de lembrança focados no polo egológico (lembrança do que me fizeram, do que eu senti) e o polo mundano (lembrança do que aconteceu, do que os outros fizeram, etc.).
  • Essa polaridade realça novamente a “memória feliz” (*MHE 45*), pois “poder se lembrar” é, em última análise, mais importante do que o medo de esquecer ou o dever de comemorar.
  • O intervalo de sentido vai desde os suportes mais humildes da memória (fotos, nós em lenços, lembretes, etc.), centrados no aviso (*Reminding*) (“Dar comida ao gato!”, “Foi neste refúgio de alta montanha que passei a noite!”), até os múltiplos atos de reconhecimento (*Recognizing*: “É ele mesmo!”), passando pelo compartilhamento de lembranças comuns (*Reminiscing*: “Você se lembra de que…?”).
  • A memória pode ser qualificada como “feliz” na medida em que possibilita o “pequeno milagre do reconhecimento” cotidiano.
  • Apesar de ser “pequeno,” esse “milagre” é desconcertante, pois o reconhecimento “reveste de presença a alteridade do passado,” e Ricœur destaca que “este pequeno milagre é ao mesmo tempo uma grande armadilha para a análise fenomenológica” (*MHE 47*).
  • A armadilha reside na possível confusão entre o passado reconhecido e o passado percebido.
  • A tarefa da análise fenomenológica dos atos de reconhecimento é reconhecer uma “alteridade complexa” (*MHE 47*) que vai da familiaridade absoluta (“É ele mesmo!”) à inquietante estranheza do *déjà vu* (“É um que voltou”).
  • No outro extremo da cadeia, estende-se o vasto domínio dos fenômenos mnemônicos que envolvem o corpo próprio, o espaço e o mundo.
  • Neste polo “mundano,” a fenomenologia dos suvenires começa com a memória corporal (do corpo habitual ao corpo eventuário) e se eleva à memória dos lugares, enriquecendo a abordagem de Heidegger sobre a espacialidade existencial do *Dasein* no $\S$ 24 de *Ser e Tempo*.
  • Isso confirma o vínculo constitutivo entre o conceito hermenêutico de sentido e o fenômeno da orientação (com a tutela de Hermès, mencionada na introdução geral da obra).
  • “É na superfície da terra habitável que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoráveis” (*MHE 49*).
  • A palavra mais importante nessa declaração é “habitar,” porque “os lugares habitados são por excelência memoráveis” (*MHE 51*) e, mais profundamente, porque “poder se lembrar” e “poder habitar” são atos conexos.
  • Em certas culturas (como os aborígenes australianos estudados por David Abram), o vínculo entre “se lembrar” e “habitar” é tão forte que a delocalização equivale a uma perda de identidade mortal, estando a memória inseparável da paisagem.
  • A imagem usada por Ricœur para distinguir o agir e o perceber (a memória “tem seus nós e seus ventres, suas rupturas e seus lançamentos” (*MHE 41*)) pode ser aplicada à memória em si.
  • Pode-se traçar um paralelo entre a análise dos enunciados metafóricos em A Metáfora Viva e a importância da espacialidade em A Memória, a História, o Esquecimento, pois ambas as funções (a memória espacial e a metáfora viva) servem para a descoberta de um mundo habitável.
  • A questão se levanta se o mundo lembrado não estaria amassado de significações metafóricas – um mundo habitável e não o deserto do que simplesmente “é o caso” – o que se aproxima da “verdade metafórica,” a qual remete a “uma experiência de realidade na qual inventar e descobrir deixam de se opor e onde criar e revelar coincidem” (*MV 310*).
  • A problemática da espacialidade é notavelmente expressa no esboço de uma fenomenologia do espaço habitável.
  • A parte epistemológica da obra se inicia com a análise fenomenológica das diferentes “colocações” (*places*) que os seres de carne ocupam, perdem e reencontram (*MHE 191*).
  • Ricœur discerne nessas colocações modalidades do ato de habitar, cujas polaridades (“residir e se deslocar, abrigar-se sob um teto, ultrapassar um limiar e sair para fora” (*MHE 185*)) podem ser relacionadas ao casal “Héstia-Hermès” no pensamento grego arcaico.
  • O que é válido para a “odisseia do espaço alternadamente vivido, construído, percorrido, habitado” (*MHE 191*) também é válido para os deslocamentos e transferências de sentido veiculados pelas metáforas vivas.
  • A fenomenologia da memória deve enfrentar a dificuldade considerável representada pela noção de “lembrança-imagem,” que não pode ser simplesmente excluída da memória.
  • A fenomenologia da lembrança e a fenomenologia da imagem (incluindo as modificações da consciência imagética, da alucinação à ficção) invadem-se mutuamente, como demonstra o exemplo de Husserl.
  • Apesar da diferença eidética que impede a confusão entre imaginar e lembrar, é impossível ignorar o “curioso paralelismo” (*MHE 65*) que as conecta.
  • “Quer seja simplesmente evocado como presença, e a esse título como *pathos*, quer seja ativamente procurado na operação do aviso que conclui a experiência do reconhecimento, o suvenir é representação, representação” (*MHE 240*).
  • Essa tese é crucial não apenas para a memória individual, mas também para a “representação” histórica do passado, o que Ricœur demonstra em sua epistemologia do conhecimento histórico.
  • Neste nível também, a dificuldade em distinguir a lembrança da imagem revela-se “o tormento da fenomenologia da memória” (*MHE 305*).

PS: GREISCH, Jean. Paul Ricoeur, l’itinérance du sens. Grenoble: J. Millon, 2001.

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