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autores:araujo-de-oliveira:araujo-de-oliveira-1996-206-211-a-compreensao

Araújo de Oliveira (1996:206-211) – a compreensão

Data: 2025-03-15 18:10

(MAO1996)

A compreensão, enquanto um dos existenciais do eis-aí-ser (Dasein) e a linguagem pertencem à mesma esfera: a esfera do [206] desvelamento dos entes que radica na essência da linguagem enquanto casa do ser 1). Em outras palavras, a tecnologia da informação é uma, a que hoje é dominante, das maneiras de revelação da linguagem a nós, mas que, enquanto absolutizada, oculta-nos a verdadeira essência da linguagem.

Ora, como toda a tradição filosófica e científica tem uma postura objetivante em relação à linguagem, trata-se, para Heidegger, de ter a coragem de propor outro paradigma, que para ele é a hermenêutica do eis-aí-ser, como ser-no-mundo.

O ponto de partida é a fenomenologia de Husserl, cuja tarefa fundamental era tematizar a subjetividade anônima constituidora do mundo objetivo, enquanto mundo de sentido. Heidegger confronta-se, então, com a tese central dessa fenomenologia: a tese da intencionalidade. Toda consciência é sempre consciência de algo, isto é, constituição de uma objetividade 2). Aqui está, precisamente, a originalidade de Husserl em relação à tradição do pensamento transcendental: para Husserl há uma pluralidade de formas de objetividade de tal modo que é tarefa da fenomenologia pesquisar os diferentes modos de dar-se do real ao homem. Ora, Heidegger, radicalizando a fenomenologia, supera-a na medida em que se pergunta pela própria condição de possibilidade de qualquer dar-se, ou seja, trata-se de explicitar a esfera de possibilitação do próprio encontro entre subjetividade e o mundo.

Então, se a fenomenologia tinha feito da filosofia uma teoria do sentido, trata-se, agora, de tematizar o sentido dos sentidos, pois, “sentido-fundamento” [207] de qualquer sentido. A filosofia faz-se, assim, uma ontologia hermenêutica 3), isto é, interpretação do sentido de ser, enquanto sentido, que subjaz a toda e qualquer atividade do homem no mundo 4). A fenomenologia é a pesquisa daquilo que se mostra a partir de si mesmo. Ora, o que se revela, em última análise, o que se mostra como fonte última de todo mostrar-se é o ser.

Por essa razão, para Heidegger, a fenomenologia é a “recondução do olhar do ente para o ser” 5). O espaço específico da filosofia é o espaço hermenêutico, o espaço da revelação dos entes, que se dá no espaço da revelação do ser.

A intenção básica de Heidegger manifesta-se aqui: para além de toda a pesquisa do ente, tematizar a questão do sentido do ser, como sentido fundante de todos os sentidos regionais. E a partir dessa perspectiva que Heidegger vai dizer que o objeto, o conteúdo, a coisa, o tema central da ontologia é a diferença ontológica, pois sua preocupação de base é a tematização do sentido do ser. A grande questão de início é: como tematizar o sentido do ser. Se o universo próprio da reflexão filosófica é o universo do sentido originário, como se faz o acesso a essa dimensão?

Para Heidegger, a tematização da questão do sentido do ser passa necessariamente por uma análise do homem, enquanto ente cujo ser consiste em compreender ser 6): o ser se dá; nesse sentido, só há mundo [208] e só há verdade, porque o homem é Dasein, isto é, o eis-aí-ser, portanto a presença, a revelação, o desvelamento do ser. Em outras palavras, o universo sentido-fundamento deixa-se tematizar pela mediação de uma análise do homem enquanto ser-no-mundo: é a analítica existencial o caminho indispensável para a reposição da questão do sentido do ser 7). O ser-no-mundo é, assim, o ponto de partida do estabelecimento do novo paradigma da filosofia, a ontologia hermenêutica.

A análise existencial é o caminho, mediação indispensável para a interpretação do sentido do ser, uma vez que a característica ôntica do eis-aí-ser consiste no fato de ser ontológico, isto é, de ser fundamentalmente compreensão do ser 8). Porque o eis-aí-ser é, em si mesmo, hermenêutico, isto é, compreendedor de ser, a ontologia hermenêutica passa pela hermenêutica do eis-aí-ser, isto é, do homem enquanto revelador do ser. O ser do eis-aí-ser é fundamentalmente EXISTÊNCIA, isto é, compreensão prévia do sentido do ser, presença do ser. O conjunto das estruturas constitutivas do eis-aí-ser é, então, a existencialidade. A analítica dessas estruturas vai explicitar as dimensões constitutivas do ser-no-mundo, superando, assim, tanto a ontologia da coisa como a filosofia da subjetividade. A análise existencial radica no caráter ontológico do eis-aí-ser antes de qualquer teorização; o homem possui uma compreensão de si, dos utensílios com que lida e dos entes de seu mundo 9).

Então, essa compreensão constitui o homem enquanto homem, ela é o existencial fundamental, pois o eis-aí-ser sempre se movimenta numa compreensão de seu próprio ser e dos outros seres 10). E isso que constitui o aí do eis-aí-ser, pois essa compreensão de seu ser fundamenta-se no sentido do ser, o que faz precisamente com que a explicitação do sentido-do-ser do eis-aí-ser seja o caminho necessário para a explicitação do sentido do ser enquanto tal. A ontologia hermenêutica radica na hermeneuticidade do eis-aí-ser. O eis-aí-ser é lançado no ser: isso constitui sua facticidade originária. O homem nunca é, simplesmente, mas só é enquanto ser-no-mundo, isto é, ele já desde sempre se encontra situado num “mundo determinado como hermenêutico”, isto é, numa maneira determinada de ordenar a totalidade dos entes. Esse “como” é a dimensão antepredicativa, anterior, portanto, ao discurso, ao que fazer prático do homem no mundo enquanto sua condição de possibilitação 11).

Na facticidade, o homem enquanto existência é antes de tudo ser do projeto, ser da possibilidade. Compreendendo seu próprio ser, o homem compreende suas possibilidades. No eis-aí-ser, o que está, em última análise, em jogo é seu próprio ser. Por isso, o ser-no-mundo é, fundamentalmente, cuidado, cujo sentido originário é a temporalidade 12). O homem, enquanto eis-aí-ser, não se reduz a alguém que observa [210] do exterior seu próprio ser, mas, antes, ele se relaciona a si como tarefa de ser. O ser do eis-aí-ser é, assim, sempre um “ser-adiante-de-si-mesmo”.

1)
M. Heidegger, Über den Humanismus, publicado juntamente com: Platons Lehre von der Wahrheit, 2a ed. Berna 1954, p. 60.
2)
M. Müller, “Phänomenologie, Ontologie und Scholastik”, in: Heidegger, op. cit., pp. 78-94. O. Pöggeler, “Hermeneutische und mantische Phänomenologie”, in: Heidegger, op. cit., pp. 321-357. E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 124: “Já sempre estamos fora de nós, o filósofo dirá: ek-staticamente. A maneira de o estar-aí ser é estar fora. Mas esse ‘fora’ é lidar com os utensílios, operar com os entes disponíveis, já sempre compreender-se assim. Assim, o ser-no-mundo enquanto revelação já é também ‘intenção’, isto é, está-junto-dos entes. E por isso que o filósofo dissolve a noção husserliana de intencionalidade no novo existencial cuidado. A intencionalidade, portanto, perde seu caráter ‘imanente’ vinculado à consciência e no cuidado se recupera a dimensão prática que já sempre caracteriza o estar-aí”.
3)
M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit. § 7 c. O próprio Heidegger explica mais tarde o sentido de “hermenêutica” nesse texto: Aus einem Gespräch von der Sprache, op. cit., pp. 95ss.
4)
Trata-se de ontologia num sentido diferente da tradição, porque aqui é tematizado o que a tradição sempre esquece: o sentido do ser. Só que o filósofo hermeneuta se orienta na compreensão. Sempre se compreende a partir de uma “situação hermenêutica”. O que se compreende é o que é dado na tradição, o que tem o caráter de acontecimento, de dádiva. Em outras palavras: no lugar da teoria absoluta que diz para sempre o que é o ser, emerge, agora, uma “teoria provisória” que explicita o sentido do ser desde a “situação”. Nunca se pode dizer definitivamente o que o ser é. Cf. O. Pöggeler, Hermeneutische und mantische Phänomenologie, op. cit, p. 56.
5)
M. Heidegger, Die Grundprobleme der Phänomenologie, Werke, vol. 24, Frankfurt am Main, 1975, p. 29.
6)
Já aqui se manifesta clara a reviravolta do pensamento transcendental. O sentido do ser precede a subjetividade: E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 22: “Antes da evidência de qualquer teoria e ponto de partida da ‘teoria do conhecimento’ e antes de qualquer subjetividade fundante, há uma evidência operando na situação de ser-no-mundo. Essa evidência está encoberta pelo óbvio do cotidiano, da separação consciência-mundo, pelo modelo da relação sujeito-objeto. E por isso que a analítica existencial recoloca a questão da ‘teoria do conhecimento’ ao fazer a crítica radical do modelo das teorias da consciência, a começar por Descartes”.
7)
Mas apenas um caminho para a verdadeira questão da filosofia, a tematização do sentido do ser: M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., p. 436. No entanto, não se pode esquecer que, para Heidegger, o permanente no pensamento é precisamente o caminho: Aus einem Gespräch von der Sprach, op. cit., p. 99. E. Stein, A questão do método na filosofia. Um estudo do modelo heideggeriano. São Paulo, 1973.
8)
M. Heidegger, Sein und Zeit, op. cit., p. 12 e §§ 18, 63, 65.
9)
Para K. Prange, aqui se manifesta uma convergência fundamental entre a filosofia hermenêutica, orientada pela pergunta pelo sentido do ser, e a filosofia analítica, na medida em que ambas não estabelecem suas respectivas perspectivas de pensamento abstratamente, por definição, mas retrocedem a uma pré-compreensão não ainda articulada teoricamente, na qual nós, de certo modo, já sempre nos movemos. A pergunta pelo sentido recorre, portanto, a uma pré-compreensão pré-teorética que já se aninhou na linguagem, mas que precisa de uma nova forma de conhecimento para ser tematizada: K. Prange, op. cit., p. 39.
10)
Nesse horizonte, a compreensão não é um fenômeno secundário, derivado, como vinha sendo tratado na “Escola Histórica”, mas se toma aqui um “existencial”, isto é, uma dimensão constitutiva do homem. Trata-se de uma dimensão originária que antecede a distinção metodológica entre “explicar” e “compreender”, que caracteriza o debate sobre a natureza das ciências do espírito de Dilthey. No entanto, para Heidegger, a compreensão não é uma categoria no sentido de um conceito a priori, cujo sentido está estabelecido para sempre, mas compreensão é um “modo-de-ser” do estar-aí, portanto do ser finito e histórico. Compreender e compreensão estão, então, ligados ao universo da história. Cf. E. Stein, Racionalidade e existência. Uma introdução à filosofia, Porto Alegre, 1988, pp. 34ss.
11)
E. Stein, Seis estudos, op. cit., p. 34.
12)
Em Ser e Tempo, o tempo é o sentido do ser e o horizonte transcendental que torna possível a compreensão do ser. Então, o tempo é pensado a partir da compreensão do ser como sua condição de possibilidade. Ora, essa perspectiva não supera de todo a ótica da filosofia transcendental. Cf. K. Tsujimura, “Zu ‘Gedachtes’ von Martin Heidegger”, in: Phil. Jahrbuch 88 (1981), pp. 316-332, aqui p. 321.
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