Agamben (E:198-202) – Eros – herói – demônio
Data: 2021-12-29 17:40
ESTÂNCIAS
Entre Narciso e Pigmaleão
AGAMBEN, Giorgio. Estâncias - a palavra e o fantasma na cultura ocidental. Tr. Selvino José Assmann. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2007, p. 198-202
Não é fácil precisar em que momento o “demônio aéreo” de Epinómis, de Calcídio e de Pselo acaba identificado com o “herói” ressuscitado pelos antigos cultos populares. Segundo uma tradição que Diogenes Laércio faz remontar a Pitágoras, certamente os [198] heróis já apresentam todos os traços da demonicidade aérea: eles habitam no ar e agem sobre os homens inspirando-lhes sinais premonitórios da doença e da saúde 1). A identificação com o demônio aéreo é testemunhada por uma etimologia cuja origem é provavelmente estoica e que aparece muitas vezes nos Padres da Igreja a partir de Agostinho. No livro X do De civitate Dei, que contém uma refutação apaixonada da teurgia neoplatônica, ele define os mártires cristãos como “nostros heroas”:
Diz-se – acrescenta ele – que este nome tenha sido tirado de Juno, que em grego se chama Ἥρα, e por isso não sei que filho seu foi chamado Heros, segundo as fábulas dos gregos, querendo significar misticamente que o ar, onde acreditam que os heróis habitem junto com os demônios, está sob a potestade de Juno… Mas, pelo contrário, os nossos mártires seriam chamados “heróis” (se o uso eclesiástico admitisse tal expressão) não porque exista no ar alguma associação entre eles e os demônios, mas porque eles vencem os próprios demônios, ou seja, as potências aéreas…
E este tríplice patrimônio semântico Eros — herói — demônio aéreo que, fundindo-se com uma antiga teoria médica, de que já existem vestígios em Plutarco e em Apuleio 2), que via no amor uma doença, desemboca na imagem “demônica” e sinistra de um Eros que já Plutarco, fora de qualquer influência cristã, descreve como um pequeno monstro munido de dentes caninos e garras 3). Assim, no âmbito da tradição neoplatônica, já se havia formado [199] uma figura “baixa” de Eros-herói-aéreo, que insidia os homens inspirando-lhes paixões insanas; e é a esta figura, unida à antiga crença hipocrática que via nos heróis uma causa de enfermidade mental, à qual se deve, senão a própria fórmula amor hereos da tradição medida, pelo menos sua interpretação como amor heroycus (“amor heroico”) 4). O amor heroico não é, na sua origem, o amor mais nobre e elevado, mas o baixo e obscuro, inspirado pelo herói-demônio aéreo. Assim como a teoria humoral da melancolia estava ligada à influência sinistra do demônio meridiano (reencarnação de Empusa, figura pertencente ao cortejo espectral de Hecates, causa também ela, segundo Hipócrates, de pesadelos e enfermidades mentais), assim também a doutrina médica do amor hereos expressava a polaridade patológica das influências de Eros herói-demônio aéreo. E é esta figura heroico-demoníaca de Eros, com caninos e garras, que deve ter inspirado o modelo iconográfico do Cupido “baixo e mitográfico”, que Panofsky pressupõe estar na origem da representação de Amor com garras no lugar dos pés, na alegoria de Giotto sobre a castidade e no afresco do castelo de Sabbionara, cujo protótipo procura reconstruir, através da ilustração dos Documenti d’amore de Francesco da Barberino, que mostra o Amor com as garras e o arco, em pé, sobre um cavalo a galope. Panofsky não conseguiu identificar o modelo deste curioso tipo iconográfico, pressupondo, porém, que “deve ter sido imaginado algum tempo antes que Barberino escrevesse seu tratado, embora certamente não antes do século XIII” 5). Na realidade, conforme já observamos, uma imagem “demônica” de Eros já havia sido elaborada—pelo menos nas fontes literárias — na Antiguidade tardia, no âmbito da teurgia neoplatônica, levando Plutarco a atribuir caninos e garras a Eros e confluindo, em determinado momento, com a teoria médica do amor hereos. E é [200] no campo da teurgia ídolo-poiética, em passagem de Proclo, onde se deve buscar verossimilmente a origem do inusitado tema de Eros em pé sobre um cavalo.6) Estas as características obscuras e demoníacas que devemos aprender a ver por detrás da nobre face do deus de amor dos poetas. Só se compreendermos que a teoria do amor é uma polarização audaz do amor “heróico-demoníaco” e do amor enfermidade, poderão medir-se o caráter revolucionário e a novidade de uma concepção que, apesar das mudanças sofridas no transcurso de sete séculos, é substancialmente também a nossa, com todas as suas ambiguidades e suas contradições. E só tal proximidade com uma experiência, mórbida e demônica, da imaginação, que pode explicar, pelo menos parcialmente, a descoberta medieval do caráter fantasmático do processo amoroso, deixado tão singularmente na penumbra na tradição clássica. Se, pelo contrário, se pressupõe na sua origem um modelo “elevado” (como, por exemplo, a mística cristã platonizante e, através desta, a teoria platônica do amor celeste), fica excluída precisamente a inteligência daquilo que a descoberta dos poetas tem de único e de específico. Não se deve, naturalmente, esquecer que uma polaridade positiva estava potencialmente contida, conforme vimos, na própria tradição cultural na qual se vinha formando a imagem “baixa” de Eros, desde a teurgia neoplatônica até a pneuma-fantasmologia. Assim como a teurgia neoplatônica certamente contribuiu para a formação da soteriologia amorosa, assim a revalorização do “espírito fantástico”, realizado no crisol alquímico no qual o platonismo se uniu fecundamente ao pensamento cristão, influenciou indubitavelmente na revalorização poética do amor. A polarização positiva de Eros coincide, nos poetas, com a exasperação do seu caráter fantasmático. Se os médicos aconselham como remédio principal do amor hereos o coito, e recomendam tudo o que possa desembaraçar o enfermo de sua “falsa imaginação”, o amor dos poetas mantém-se, por sua vez, rigorosa e obsessivamente no interior do próprio círculo fantasmático. Aparece assim como a “enfermidade mortal” da imaginação, que precisa ter atravessado até o fundo, sem nem iludi-la, nem superá-la, porque ela, ao lado de um risco letal, encerra uma possibilidade extrema de salvação. Nesta perspectiva, Narciso e Pigmaleão aparecem como os dois emblemas extremos, entre os quais se situa uma experiência espiritual cujo problema crucial pode ser formulado com as seguintes interrogações: como curar do amor hereos sem transgredir o círculo fantasmático? [AgambenE:198-202]
