* A vastidão do tema “Fenomenologia e História” e a limitação do exame a Edmund Husserl e Martin Heidegger
* O utilidade de evocar duas abordagens filosóficas da história anteriores à fenomenologia
* A filosofia da história de Georg Wilhelm Friedrich Hegel: a razão (Vernunft) na história
A noção central em torno da qual Hegel articula sua filosofia da história: a razão (Vernunft)
A razão figurando no título da introdução às suas lições de filosofia da história: Die Vernunft in der Geschichte
A razão sendo, segundo ele, a lei do mundo e, por conseguinte, as coisas tendo-se produzido racionalmente na história do mundo
A tese de Hegel estando em acordo com a convicção na raiz da tradição filosófica inaugurada pelos Gregos (Anaxagoras dizia que o [nous→/spip.php?page=search_definitions&search=nous] rege o mundo) e com a convicção que anima a fé cristã (o mundo regido pela Providência)
A transformação do princípio abstrato de Anaxagoras e do registro da crença da fé cristã em uma questão de demonstração rigorosa e sistemática por Hegel
Anaxagoras estando muito longe de aperceber que a natureza forma um verdadeiro sistema racional, no seu campo privilegiado de investigação (a physis), e mais longe ainda de aperceber que o mundo histórico forma sistema
O nous de Anaxagoras sendo apenas um voto metodológico e formal que não investia em nada os conteúdos da sua busca
A “razão na história” não sendo uma fórmula epistemológica para Hegel, mas uma fórmula ontológica
A providência do cristianismo sendo um princípio não menos abstrato aos olhos de Hegel do que o nous de Anaxagoras, pois as vias desta providência permanecem subtraídas ao saber para o crente
A refutação da distinção de Santo Agostinho na Cidade de Deus entre o procursus (o achegamento secreto do mundo para a beatitude celeste) e o excursus (o curso aparente dos assuntos humanos)
A demonstração de Hegel de que a razão absoluta se revela plenamente no curso do processo histórico mesmo, em lugar de preservar seu segredo
O curso da história sendo uma verdadeira teodiceia, a demonstração progressiva do absoluto
A filosofia da história sendo uma teleo-logia, porque ela é uma teodiceia
O [telos→/spip.php?page=search_definitions&search=telos], definido como razão absoluta, não podendo ser senão um reino onde a razão não é mais relativa em nada a qualquer coisa outra que ela mesma
O telos sendo a identidade do racional e do real, da Ideia e do ser, do poder e do em si
A identidade do racional e do real sendo especulativa no sentido primeiro especular da palavra
A razão absoluta, dita também Espírito absoluto, contemplando-se a si mesma, reconhecendo a sua própria produção na totalidade do real — natureza e história reunidas
A filosofia da história sendo o exposto de um processo universal de gestação do telos, dado que esta teleologia é universalmente englobante
O processo de elaboração como uma sucessão de etapas
Cada etapa atestando ao mesmo tempo a antecipação do telos e uma defeituosidade em relação ao cumprimento deste telos
Cada etapa sendo já a identidade do real e do racional, e no entanto não o sendo ainda
A harmonia reinando na medida em que a etapa já é a identidade do real e do racional
A etapa intrinsecamente marcada por uma crise na medida em que ainda não é a identidade do real e do racional
A crise consistindo, de maneira geral, em que o em si prevalece sobre o para si, ou a substância sobre o sujeito, ou ainda a representação ([Vorstellung→/spip.php?page=search_definitions&search=Vorstellung]) sobre a consciência de si ([Selbstbewusstsein→/spip.php?page=search_definitions&search=Selbstbewusstsein])
A história sendo todo o resto que não uma sequência de eventos que marcaram a interação de indivíduos e que requereriam a crônica
As intenções, os interesses, as paixões dos indivíduos sendo somente os meios e as ferramentas de que a razão se serve com astúcia para se cumprir a si mesma em sua universalidade, para além de toda a particularidade das visadas e das ações individuais
A astúcia da razão se servindo da violência para assegurar o seu reino harmonioso
O reino culminando em um cumprimento ao mesmo tempo teórico e prático
A figura do cumprimento teórico sendo a ciência
A figura do cumprimento prático sendo o Estado moderno, no sentido em que Hegel o entende: instituição ao mesmo tempo orgânica e burocrática
O Estado moderno superando a imediatidade que foi a da Cidade grega pelas mediações que ela instaura
O Estado moderno superando o formalismo jurídico do mundo romano pelo seu caráter orgânico
A geografia deste cursus indo do Oriente ao Ocidente, de sorte que a Europa, citando, é “das Ende der Weltgeschichte” (o fim da história universal)
O esquematismo desta descrição justificado na medida em que a sombra de Hegel é detectável no plano de fundo dos textos de Husserl sobre a história
Os textos de Husserl sobre a história sendo tardios, datando do meio dos anos 30, ou seja, de uma época dramática
A maioria dos textos de Husserl gravitando em torno da preparação do opus inacabado publicado a título póstumo sob o título A Crise das ciências europeias e a Fenomenologia transcendental
O adjetivo “transcendental” tendo aparecido na terminologia de Husserl quando este empreendeu de caracterizar reflexivamente a fenomenologia
A fenomenologia tendo sido praticada na abordagem ao mesmo tempo crítica e descritiva das Investigações Lógicas, antes da caracterização reflexiva
O termo transcendental sendo de origem kantiana
O transcendental visando em Kant, por oposição a toda busca simplesmente empírica, a busca de condições necessárias e universais de possibilidade tanto para o conhecimento quanto para a ação
O dizer que a fenomenologia é transcendental sendo o dizer que o seu campo de investigação, a consciência intencional, se caracteriza nos seus dois polos — aquele do intendo e aquele do intentum — por condições necessárias e universais de possibilidade
A diferença maior com Kant consistindo no fato de estas condições serem pensadas ser acessíveis a uma vista, a uma intuição, ao termo de uma variação eidética, enquanto em Kant só o espaço e o tempo podem ser intuicionados
A pesquisa de Husserl não tendo considerado que a história caía, em que quer que seja, no campo da fenomenologia durante três décadas
A anedota significativa segundo a qual Husserl, expondo a Heidegger a forma em que concebia o artigo “Fenomenologia” para a Encyclopaedia Britannica, se viu perguntar pelo seu interlocutor como a história ali se inscrevia, ao que Husserl teria respondido, batendo na testa: “Ach! Ich habe die Geschichte ganz vergessen…” (Ah! Eu esqueci completamente a história…)
A abordagem de Husserl à história se dando no campo da fenomenologia transcendental no momento em que a história começa a preocupá-lo
A preocupação pela história sendo imposta exteriormente pela irrupção maciça de uma ideologia nacionalista e racista que o concernia em sua própria pessoa
A preocupação pela história também motivada por questões internas à fenomenologia mesma
A fenomenologia tendo descoberto a consistência intrínseca da ordem das idealidades e tendo mostrado que estas não podiam em nenhum caso ser consideradas como simples emanações de fatos psicológicos, físicos, biológicos empiricamente observáveis
A fenomenologia, rejeitando o historicismo no mesmo título que toda espécie de naturalismo, não podia negligenciar a história
A necessidade de a fenomenologia reconhecer que a relação intencional à ordem das idealidades — por exemplo, as idealidades matemáticas — não era de sempre, que tinha nascido em certo momento, que tinha uma gênese histórica
A determinação da forma em que Husserl responde à questão transcendental de saber quais são as condições de possibilidade do “fenômeno” chamado história, não no sentido da historiografia, mas no sentido da Geschichte, das res gestae, que a historiografia pressupõe
* A historicidade individual e o conceito husserliano: teleologia e autosuficiência
O que é preciso para que o curso de uma existência individual seja o objeto de uma História sob a forma simples de uma biografia
A resposta de Husserl citando um manuscrito do grupo K III: “Só pode haver historicidade no sentido próprio para um homem que tenha pré-desenhado o sentido unificado de sua vida, como aquele que se decidiu livremente a consagrar sua vida a um Beruf e prescreveu por isso a todas as suas vontades e as suas ações futuras uma regra, uma norma; mantendo-a através de todas as vicissitudes, permanecendo fiel a si mesmo, ele conduz na história da sua missão uma vida unificada plena de sentido”
A historicidade sendo entendida como uma teleologia, ou seja, mais precisamente como um processo que começa por um pré-desenho, um esboço prévio, uma antecipação de uma norma que rege cada uma das suas etapas
O diverso eventual, com o elemento de surpresa que aí se prende, sendo considerado como exterior à história, como o contra o que a unidade da norma se afirma e se mantém
A preponderância do um sobre o diverso, e a preponderância da identidade sobre a diferença, da mesmidade sobre a alteridade
O que é histórico permanecendo fiel a si, e dependendo o sentido deste processo exclusivamente da manutenção de si, sendo o processo dito autosuficiente
A recorrência, neste conceito husserliano da historicidade individual, de alguns dos traços da historicidade coletiva no sentido hegeliano: teleologia, exclusão do eventual, autosuficiência
* A historicidade coletiva e a crise europeia no pensamento de Husserl: o sentido teleológico do Espírito (Geist)
A confirmação e o aparecimento mais nítido da recorrência dos traços hegelianos quando se presta atenção ao que Husserl diz da historicidade coletiva
A Concentração na conferência de Viena de 1935 intitulada Die Krisis des Europaischen Menschentums und die Philosophie (A Crise da Humanidade Europeia e a Filosofia)
O tema da crise europeia abordado por Husserl em relação ao “sentido teleológico” da filosofia da história, desde o início
A estipulação de que a crise em questão é espiritual (geistig) e é, portanto, “um problema tributário de uma ciência pura do Espírito, portanto primeiro de uma história do Espírito” (Geistesgeschichte)
A Geistesgeschichte sendo, diz ele, uma “teleologia notável que não pertence senão à Europa” (27, trad. Ricoeur)
A humanidade europeia guarda uma entelequia que lhe é inata, que domina de lado a lado todas as mudanças afetando a forma da Europa e lhes confere o sentido de um desenvolvimento orientado para um polo eterno
O dizer que a Europa, e ela só, é depositária de um sentido teleológico, sendo o dizer que a Europa nasce com a irrupção de um telos que ela prescreve a si mesma
A irrupção — o Urphanomen (o Urfenômeno) da Europa espiritual — sendo a irrupção da filosofia ela mesma, nascida na Grécia
A filosofia, em relação às outras produções espirituais, tendo o aspecto de “uma forma espiritual sistematicamente fechada” ao mesmo tempo que universal
A filosofia sendo “ciência universal, ciência do todo do mundo, ciência da unidade total de todo o ser (Alleinheit ailes seienden)”
A Europa sendo dotada de uma historicidade toda a feita específica pela irrupção da filosofia, ciência universal
A Europa se elevando a um nível de historicidade ao qual as culturas extra-europeias – isto é, “extrascientíficas” – não saberiam pretender, graças à filosofia
As outras culturas se limitando a tarefas e prestações relativas a um Umwelt quotidiano estritamente finito, exclusivamente empírico e recebido ingenuamente à maneira de uma tradição que vai de si
A Europa, desde a irrupção da filosofia, sendo animada de um interesse para uma “figura normativa situada no infinito”
A vida se universalizando, graças à filosofia, pois o depositário das tarefas infinitas da theoria extravasa a soma de “todas as pessoas reais e possíveis” e de todas as tradições nacionais: é a humanidade
A [theoria→/spip.php?page=search_definitions&search=theoria], funcionando como uma norma infinita, não acarretando no entanto ruptura com a prática, mas transformando-a profundamente
A theoria universalizando a prática, subordinando-a a um trabalho dos uns com os outros e dos uns para os outros (um Miteinanderarbeit) focado na pesquisa, a compreensão, a educação
A theoria conduzindo a existência a se compreender sub specie aeterni (69)
A objeção de Husserl a si mesmo sobre se este quadro não trai um retorno ilusório a uma Aufklarung suspeita, grosso modo ao racionalismo dos séculos XVII e XVIII
A resposta negativa de que este racionalismo estava a extraviar-se: era um “sich verirrenden Rationalismus”
O extravio do racionalismo sendo a raiz da crise de que ele trata, segundo ele
O extravio se devendo a uma ingenuidade fundamental cujo nome o mais geral é o de objetivismo ou ainda de naturalismo
A lacuna essencial do objetivismo e do naturalismo sendo a ausência de reflexão, de [Selbstbesinnung→/spip.php?page=search_definitions&search=Selbstbesinnung]
O reconhecimento de Husserl de ser herdeiro do idealismo alemão: “der deutsche Idealismus ist uns in dieser Einsicht langst vorausgegangen”
O idealismo alemão, segundo ele, já se tendo “esforçado com paixão de superar esta ingenuidade” objetivista
A ingenuidade objetivista, fonte da crise europeia, sendo não somente unilateral, mas absurda
O absurdo de “conferir ao espírito uma realidade natural, como se fosse um anexo real (real) dos corpos, e de pretender atribuir-lhe um ser espaço-temporal no interior da natureza”
“A subjetividade que cria (leistende) a ciência não tem o seu lugar legítimo em nenhuma ciência objetiva”
A ignorância obstinada do objetivismo ou do naturalismo de que a “natureza viva” de que se reclamam é ela mesma “a obra do espírito que a explora e ela pressupõe por conseguinte a ciência do espírito”
As formulações quase hegelianas sob a pena de Husserl, já que o idealismo alemão lutou apaixonadamente contra este desconhecimento
“O Espírito, e mesmo só o Espírito, existe em si e para si; só, ele repousa sobre si e pode, no quadro desta autonomia e somente neste quadro, ser tratado de uma maneira verdadeiramente racional, verdadeira e radicalmente científica”
A suficiência do Espírito a si mesmo só se dando quando o Espírito, cessando de se virar ingenuamente para o exterior, retorna a si e permanece em casa e puramente em casa (bei sich)
A universalidade do Espírito absoluto abraçando tudo em uma historicidade absoluta onde a natureza se incorpora enquanto é uma obra do espírito
A não coincidência das formulações com a terminologia de Hegel
A concepção de historicidade autêntica em Husserl sendo o processo de realização de um plano racional a despeito das vicissitudes e para além do diverso eventencial, como em Hegel
A concepção deste processo como um trabalho, como em Hegel
O concurso dos indivíduos sendo suposto por este trabalho, mas estes não sendo senão os agentes ou os funcionários de uma entidade que os ultrapassa, como em Hegel: o Espírito em si e para si, só verdadeiro depositário ou titular da historicidade
O sentido do processo só se revelando à ciência das ciências, ou seja, à filosofia, como em Hegel
A diferença maior, quanto à história, consistindo em que em Hegel a filosofia se detém no registro pacífico da comemoração, enquanto em Husserl ela se detém no registro heroico da tarefa