#### A Trajetória de Ulisses: Do Anônimo à Existência em Pessoa
* A Condição Inicial de Ulisses no Retorno
O herói que erra, em presa às angústias e aos lamentos, sobre a mar inumerável que apaga toda lembrança.
O último (ou quase) entre os grandes guerreiros da Ilíada a não ter perdido a vida sob os muros de Ilion ou durante seu retorno à pátria.
A cessação de ser o herói glorioso cuja astúcia e sagacidade permitiram aos Aqueus vencerem.
O estar entregue aos elementos desencadeados, aos monstros e aos prodígios pelo cólera do deus dos oceanos.
O estar incessantemente a ponto de ser engolido por uma morte impessoal.
A perda de tudo: sua terra, seus pais, seu passado, sua reputação e até seu próprio nome.
* O Estratagema de Outis (Ninguém)
O artifício mais célebre urdido para salvar sua vida e a de seus companheiros no antro de Polifemo, após aventurar-se por curiosidade.
A atribuição natural de uma falsa identidade que se tornou, em certo sentido, sua identidade verdadeira: Outis, que se translitera como Ninguém.
O lançamento de Ninguém como seu “nome o mais glorioso (kluton)” (IX, 364) ao Ciclope.
O nome que equivale à derrota de toda glória e é o contrário de um nome.
* A Crise de Reconhecimento e o Anônimo Náufrago
O Ulisses cativo do vasto mar que perdeu o caminho de si mesmo.
A incapacidade de se reconhecer no relato de seus feitos passados.
A reação de interdito e as lágrimas irrefreáveis quando o rei dos Feácios, Alcínoo, roga ao aedo Demódoco para celebrar os grandes feitos do cerco de Troia e cantar as proezas de Ulisses diante do náufrago anônimo (VIII, 531-532).
* A Reconquista da Ipseidade
A lembrança do anfitrião, Alcínoo: “nenhum humano está completamente privado de nome” (VIII, 552).
A trajetória do herói mais humano da epopeia homérica que o reconduz não só à sua ilha natal, mas a si mesmo.
A reconquista de seu estatuto de pai, esposo e rei.
A restauração em sua integridade de homem e a dissipação da nuvem de anonimato que o subtraía aos olhares.
A manifestação aos olhos de todos pelo que ele é.
O herói da resiliência e da fidelidade sem falhas (ao mesmo tempo que do disfarce e da astúcia múltipla) que recupera seu nome: Odisseus.
O nome Odisseus em que ressoa o eco abafado de oudeis (“nada”, “ninguém”).
O ato de se reconquistar a si mesmo e de se tornar (talvez pela primeira vez) aquele que ele é o único a poder ser.
A resposta de Ulisses a Telêmaco que não consegue crer no retorno do pai:
“Não, não virá aqui outro Ulisses [senão ele mesmo] (Ou… et' allos… Odisseus)
Sou bem eu (all' hod' egô) que, após ter tanto sofrido, tanto errado,
Acabo de chegar, após vinte anos, ao país de meus pais” (XVI, 203-206).
* A Metamorfose em Si Mesmo e a Passagem à Verdade
A encenação, no mais antigo poema da cultura ocidental, da metamorfose que muda Ulisses em si mesmo sob os olhos desvendados dos que falhavam em reconhecê-lo.
A reintegração do esplendor de sua própria verdade.
A passagem do estatuto de “Ninguém” ao de “Ulisses em pessoa”, segundo o título de um estudo de Jean-Pierre Vernant.
Ulisses como a primeira de uma longa série de figuras que corporificam a operação misteriosa objeto de escrutínio.
O passagem insustentável e brilhante da existência em regime de escuridão à existência “em pessoa”, em uma forma de verdade.
A questão do significado de tal passagem e de como se opera esta transição da escuridão a nós mesmos e aos outros que nos conduz à luz.
O acesso ao nosso “próprio”, o ser nós.
As formas que esta ideia de existência em pessoa, ou existência no modo da ipseidade, pôde revestir no pensamento ocidental.
#### O Disfarce e a Elevação de Ulisses
* A Habilidade de se Envolver em Trevas
A intriga que se concentra no passagem que conduz da dessemelhança a si mesmo à assunção de sua própria verdade.
A centralidade da intriga intensificada pelo fato de Ulisses (polumêkhanos Odisseus, “Ulisses que tem mais de um truque em sua sacola”) ser o mais hábil a envolver-se em trevas de todos os heróis celebrados pela epopeia homérica.
O episódio no cerco de Troia que forma o contraponto a seu retorno a Ítaca: ele se feriu o corpo e se cobriu de trapos para penetrar na cidade inimiga, “jogando como um mendigo, a fim de enganar melhor” (IV, 245).
* A Metamorfose de Não-Semelhança
O retorno a Ítaca em que Atena, sua protetora, opera uma metamorfose similar para permitir-lhe voltar incógnito ao seu lar.
O estar envolvido em uma nuvem de escuridão, sujo, feio, com o brilho de seus belos olhos embaçado.
O ser reduzido a uma “horrível não-semelhança”, tradução de Vernant para aeikelios (que se translitera como vergonhoso, miserável, vulgar, mas também tornando-se estranho a si mesmo, pois aeikês significa “estranho”).
A queda abaixo de si mesmo que é apenas o prelúdio de um movimento em sentido contrário.
* O Domínio do Simulacro e a Transfiguração Insustentável
A restauração da aparência do herói que lhe permite retomar seu rosto e se manifestar aos olhos de todos aureolado de sua própria verdade.
Ulisses que é por excelência aquele em quem é possível surpreender esta transição insensível, esta transfiguração insustentável em si.
A maestria na arte do simulacro e a prova de uma forma de impessoalidade.
Nausicaa como a primeira a assistir a isto no poema homérico, na praia, ao descobrir o náufrago hirsuto, assustador, semelhante a um leão das montanhas.
A dissimulação de sua nudez atrás de folhagens.
A nova metamorfose em si mesmo operada pela deusa, com Ulisses recuperando a figura humana.
O entrar nos limites de sua própria figura que é, por este mesmo fato, elevar-se à sua forma mais alta, ornando-se de esplendor e luz.
O Ulisses que aparece subitamente transfigurado à jovem: kallei kai kharisi stilbôn (“brilhando de graça e de beleza”) (VI, 237).
A exclamação de Nausicaa: “Ele tinha há pouco, eu o confesso, uma aparência lastimável (aeikelios); / Mas por agora ele se assemelha aos deuses, senhores do vasto céu!” (VI, 242-243).
* O Paradoxo da Epifania Divina e o Telos
A repetição do mesmo prodígio diante de Telêmaco e da própria Penélope.
O desvelamento que toma a forma de uma epifania divina (XVI, 199-200).
A observação de Jean-Pierre Vernant: “Para se tornar plenamente ele mesmo, Ulisses deve aparecer mais que ele mesmo: semelhante aos deuses”.
A existência em pessoa que significa, primeiramente, para o herói, a realização de uma norma imanente ao seu ser.
O aperfeiçoamento de seu telos e o cumprimento de sua essência verdadeira.
O retorno a si que é existir “à altura de si mesmo”, realizando uma plena adequação a si que é o privilégio dos deuses.
O ato de coincidir consigo mesmo e elevar-se à sua própria excelência em um só e mesmo movimento.
A constatação de que “ser si mesmo” nunca consistirá apenas em retornar a um dado de partida, mas em realizar em si um ideal difícil de atingir.
O (re)tornar-se si que equivalerá necessariamente a tornar-se mais que si.
O herói da fidelidade e da perseverança que nunca se torna novamente aquele que ele foi.
A necessidade de ganhar a si mesmo, re-ensaiando a si mesmo ao mesmo tempo como semelhante e diferente.
O herói que realiza o que nenhum dos outros guerreiros da Ilíada cumpriu: o acesso a uma forma de posse de si que é o fruto de suas provas.
A necessidade de aprender a dominar-se e a vencer suas emoções (“Seja sensato, meu coração” - XIX, 42).
O domínio sobre si que é ilustrado exemplarmente pelo episódio das Sereias.
O episódio das Sereias que representa, em muitos aspectos, uma prefiguração da enkrateia (autocontrole) filosófica.
A capacidade de, finalmente, renovar o laço consigo mesmo, reencontrando-se no espelho dos olhos de Penélope.
#### O Projeto do Presente Ensaio: História da Ipseidade
* A Formulação do Objetivo
* As Questões do Projeto
A existência de algo como uma “verdade pessoal” e, em caso afirmativo, seus critérios.
A história coerente da ideia de “existência em pessoa” que se possa manifestar a longo prazo.
A diferença do projeto da obra em relação a uma “história da subjetividade” compreendida geralmente através dos grandes conceitos da metafísica (hypokheimenon, ousia, subjectum, alma, ego, consciência, etc.).
O papel que cabe aos diferentes tipos e regimes de discurso nesta investigação: filosófico, teológico, espiritual, retórico, literário, estético.
* O Percurso Filosófico Alternativo
A esperança de responder ao menos em parte a estas questões ao longo do caminho.
O esboço de uma história da filosofia ocidental (ou de alguns de seus momentos fundadores) com contornos muito diferentes dos geralmente atribuídos.
O afastamento das grandes metafísicas do eu e da subjetividade.
O empréstimo dos caminhos transversos de uma investigação sobre as formas de vida e os modos de existência.
* As Limitações da Obra
A consciência viva das limitações que afetam o empreendimento e seu caráter, na melhor das hipóteses, de simples esboço, apesar da extensão do livro.
O desejo de que o leitor não se aparte do sorriso imperecível que não é apenas de Ulisses, mas da filosofia, ao longo de tantos abismos.
PS: ROMANO, Claude. Être soi-même: une autre histoire de la philosophie. Paris: Gallimard, 2018