* A empresa de ter a consciência – no sentido do alemão Gewissen – como o lugar de uma forma original de dialética entre ipseidade e alteridade, e seus desafios
* O momento de alteridade que distingue a consciência em Ser e Tempo de Martin Heidegger
A descrição perfeita do momento de alteridade que distingue a consciência no capítulo de Ser e Tempo, intitulado precisamente Gewissen
A alteridade que, longe de ser estranha à constituição da ipseidade, está estreitamente ligada à sua emergência, na medida em que, sob o impulso da consciência, o si é tornado capaz de se retomar sobre o anonimato do “se”
A implicação da consciência na oposição entre o si e o “se” não excluindo um outro tipo de relação entre ser-si e ser-com, na medida em que, por um lado, o “se” é já uma modalidade inautêntica do ser-com e, por outro lado, esta retirada no foro interior oferece a outrem o vis-à-vis que ele tem o direito de esperar, a saber, precisamente o si-mesmo
O traço que especifica o fenômeno da consciência, a saber, a espécie de grito (Ruf), de apelo (Anruf), que a metáfora da voz assinala, anunciando-se no arranque do si do “se”
O si aparecendo interpelado e, neste sentido, afetado de forma singular neste íntimo colóquio
A afeção por uma voz outra apresentando uma dissimetria notável, que se pode dizer vertical, entre a instância que apela e o si apelado, à diferença do diálogo da alma consigo mesma, de que fala Platão
A verticalidade do apelo, igual à sua interioridade, que faz o enigma do fenômeno da consciência
A crítica virulenta à má interpretação da consciência que se pode ler nas páginas que a Fenomenologia do Espírito consagra à “visão moral do mundo”
O Gewissen sendo solidário de uma dialética de grau superior onde se confrontam a consciência agente e a consciência julgadora, atestada pela continuação do capítulo VI
O “perdão”, oriundo do reconhecimento um pelo outro dos dois antagonistas confessando o limite dos seus pontos de vista e renunciando à sua parcialidade, designando o fenômeno autêntico da consciência
A crítica da visão moral do mundo tomando lugar no caminho desta reconhecimento
A crítica acerba atacando “postulados” inteiramente construídos para as necessidades da causa, e nos quais é difícil reconhecer os traços do formalismo kantiano
O artifício da construção hegeliana desta figura tomando lugar entre os excessos, transgressões, hipérboles de todas as espécies de que se nutre a reflexão moral e talvez a reflexão filosófica em geral
O primeiro postulado: a moralidade, ao mesmo tempo que exige que o dever seja feito, atinge de insignificância a natureza inteira, através da condenação do desejo, que é a natureza em nós
O segundo postulado: a moralidade adiando ao infinito o momento da satisfação que no entanto o agente procura na efetividade da ação, por falta de saber produzir alguma harmonia entre o dever-ser e o ser
O terceiro postulado: este acordo da forma e do conteúdo não sendo dado aqui-embaixo, é reportado em uma outra consciência, a de um santo legislador situado fora do mundo
A crítica se atacando ao “deslocamento equívoco” (die Verstellung) a que se entrega a consciência, traçada que ela é de uma posição insustentável à outra, para tentar escapar às contradições que dissimulam estes postulados da visão moral do mundo
A crítica dando “desprezo” a uma hipocrisia que os deslocamentos equívocos não conseguem dissimular
A crítica só tendo sentido na perspectiva do momento ulterior do espírito, já presente como em negativo no deslocamento equívoco
O achegamento da crítica da visão moral do mundo para o ponto onde o Gewissen se iguala à certeza de si mesmo fazendo com que em Hegel ressoe ainda só um golpe de advertência, antes que rebente com Nietzsche o trovão decisivo
O único ponto a reter da segunda dissertação da Genealogia da moral, intitulada “A Falta [Schuld], a má consciência [schlechtes Gewissen] e o que lhe assemelha”, sendo o paralelismo com a crítica hegeliana do “deslocamento equívoco”
A parentela profunda entre as duas críticas provada por Nietzsche mesmo quando caracteriza como interpretação falsificante a “má” consciência e como interpretação autêntica a sua própria visão da “grande inocência”
O problema em Nietzsche de saber se o reenvio à Vida “forte” ou “fraca”, assegurado pelo método genealógico, atinge o referente último de um deciframento terminal
A dissertação parecendo deixar um lugar a um conceito, de alguma sorte neutro, de consciência, pelo elogio que aí é feito da promessa, antídoto do esquecimento
O esquecimento, no entanto, tido por uma faculdade de inibição ativa, “uma faculdade positiva em toda a sua força”
O domínio de si – esta “mnemotécnica”! – tendo atrás de si uma longa história de tormentos e de torturas que compartilha com o ascetismo que a terceira dissertação ligará à maleficência do padre
A má consciência requerendo um desmantelamento completo, que se inicia pela evocação de sinônimos pesados de sentido em alemão, como Schuld – fracamente traduzido por falta –, Schulden – por dívida –, Vergeltung – por represálias
O mundo claro, em um sentido, do credor e do devedor – tenebroso, em um outro sentido, da cólera e da vingança
A forma mais arcaica de reaver um crédito sendo violentar o devedor: “A compensação [Ausgleich] representa então um convite e um direito à crueldade” (Genealogia da moral, p. 258)
A necessidade de não se deixar impressionar pelo tom autoritário de Nietzsche, proclamando ter descoberto o “foco de origem”, o “começo do mundo dos conceitos morais” (ibid., p. 258)
A estranha arqueologia onde a pré-história e o futuro se trocam, dos antigos tempos (Vorzeit) dos quais é dito “que eles existem aliás de todo tempo, ou que eles são sempre possíveis de novo” (ibid., p. 263)
A ponta anticartesiana e antikantiana de toda esta tirada que mistura a complexidade tenebrosa do castigo à simplicidade aparente da relação de credor a devedor, sendo o importante o adestramento do animal responsável não ser mais levado ao crédito da “vontade livre” e da “espontaneidade absoluta do homem no bem e no mal” (ibid., p. 262) – esta “invenção tão temerária e tão nefasta dos filósofos”
A fluidez da origem, oposta à pretensa fixidez do fim, sendo a ocasião de uma “nova interpretação” (ein Neu-interpretieren), de um “acomodamento” (“ein Zurechtmachen) (ibid., 269), que atesta, em retorno, a que ponto as significações tardias atribuídas ao castigo eram sobre-adicionadas
A força de interpelação da suspeita, implícita em Hegel, explícita em Nietzsche, de que consciência igual “má consciência”
A pior solução para quebrar esta equação sendo apelar da má à boa consciência, o que permaneceria cativo da mesma problemática viciosa da justificação
O arrancar da consciência à falsa alternativa da “boa” e da “má” consciência encontrando em Heidegger sua formulação mais radical
A formulação que se resume nesta única frase: “A atestação de um poder-ser autêntico, é a consciência que a dá” ([234] trad. Martineau, p. 175 ; cf. trad. Vezin, p. 287)
O poder-ser que a consciência atesta não sendo inicialmente marcado por nenhuma competência a distinguir o bem do mal
A consciência sendo à sua maneira “para além bem e mal”, um dos efeitos da luta levada contra o pensar-valor dos neokantianos e contra o de Max Scheler em sua Ética material [não formal] dos valores
O apelo, a advocação (segundo a tradução proposta por E. Martineau) do Anruf, não tendo alguma força originariamente ética, ao sublinhar Sein em Dasein
A consciência não dizendo nada: nem barulho, nem mensagem, mas um apelo silencioso
O apelante não sendo outro que o Dasein ele mesmo: “No consciência, o Dasein se apela a si mesmo” ([275] trad. Martineau, p. 199 ; cf. trad. Vezin, p. 332)
A dimensão de superioridade reconhecida na imanência integral do Dasein a ele mesmo: “o apelo não vem incontestavelmente de um outro que está no mundo comigo. O apelo vem de mim e, no entanto, ele me ultrapassa [aus mir und doch über mich]” (ibid.)
A explicitação do traço de estranh(eir)eza (adotando a grafia de E. Martineau) pelo qual a consciência se inscreve na dialética do Mesmo e do Outro, constituindo a novidade
A sutil aproximação feita entre a estranh(eir)eza da voz e a condição decaída (ou escoada?) do ser-lançado
A confissão da passividade, da não-maestria, da afeção, ligadas ao ser-convocado, orientando-se para uma meditação sobre a neantidade, isto é, sobre o não-escolha radical que afeta o ser no mundo, considerado sob o ângulo da sua inteira facticidade
A introdução tardia da noção de Schuld – “dívida”, segundo a tradução de Martineau – não restituindo a esta estranheza alguma conotação ética
A insistência na ontologia da dívida, dissociando-se do que o senso comum prende à ideia de dívida, a saber, que ela seja para com alguém, que se seja responsável enquanto devedor, e que o ser um com o outro seja público
A exigência de Heidegger de inquirir fundamentalmente sobre “o ser em dívida do Dasein” ([283] ; trad. Martineau, p. 204 ; cf. trad. Vezin, p. 340), portanto primeiro sobre um modo de ser
O ser em dívida não resultando do endividamento (Verschuldung), mas o inverso, pondo fora de jogo os fenômenos vulgares de dívida, de endividamento
A falha desvendada não sendo o mal, mas um traço ontológico prévio a toda ética: “O ser-fundamento de uma nulidade” (Grundsein einer Nichtigkeit) ([283] trad. Martineau, p. 204 ; cf. trad. Vezin, p. 341)
O primado da ética sendo claramente despedido: “Se o ser-em-dívida originário não pode ser determinado pela moralidade, é que esta o pressupõe já para ela mesma” ([286] trad. Martineau, p. 206 ; cf. trad. Vezin, p. 344)
A atestação engendrando uma certa criteriologia, ao menos a título de crítica do senso comum, em debate com a “explicitação vulgar da consciência”
A crítica das noções de “boa” e de “má” consciência em termos vizinhos aos empregados anteriormente, atingindo a noção de “má” consciência de “vulgaridade”
A noção de “má” consciência chegando tarde demais, depois do fato (sendo reativa, diria Nietzsche), faltando-lhe o caráter prospectivo inerente ao cuidado
A “boa” consciência sendo afastada como farisaica, pois quem pode dizer “eu sou bom”?
O ponto de vista deontológico de Kant, a teoria scheleriana dos valores e a função crítica da consciência sendo rejeitados em bloco, tudo isto permanecendo na dimensão da preocupação
O sentido da atestação sendo selado: “Convocação pro-vocante ao ser-em-dívida” ([295] trad. Martineau, p. 211 ; cf. trad. Vezin, p. 353-354)
A ligação entre atestação e resolução parecendo trazer a noção de consciência ao campo da ética, pela expressão “querer ter consciência” ([295] trad. Martineau, p. 211 ; cf. trad. Vezin, p. 354)
O se-projetar reticente e pronto à angústia para o ser-em-dívida o mais próprio sendo chamado a resolução ([297] trad. Martineau, p. 212 ; cf. trad. Vezin, p. 355)
A consciência-atestação se inscrevendo na problemática da verdade, enquanto abertura e desvendamento
A verdade mais originária, porque autêntica, do Dasein, sendo conquistada com a resolução ([297] trad. Martineau, p. 212 ; cf. trad. Vezin, p. 355)
A resolução permanecendo indeterminada, cortada do pedido de outrem e de toda determinação propriamente moral
A ontologia fundamental se guardando de toda proposição quanto à orientação na ação: “Na resolução, vai para o Dasein o seu poder-ser o mais próprio, o qual, enquanto lançado, só pode se projetar para possibilidades fácticas determinadas” ([299] trad. Martineau, p. 213-214 ; cf. trad. Vezin, p. 358)
A impressão de o filósofo remeter o seu leitor a um situacionismo moral destinado a preencher o silêncio de um apelo indeterminado
A oposição à desmoralização da consciência por uma concepção que associa estreitamente o fenômeno da injunção àquele da atestação
O ser-injungido constituindo o momento de alteridade próprio ao fenômeno da consciência, em conformidade com a metáfora da voz
Escutar a voz da consciência significando ser-injungido pelo Outro, e fazendo direito à noção de dívida
O estágio da moralidade dissociado da tríade ética-moralidade-convicção e hipostasiado em favor desta dissociação, como causa do fenômeno da consciência se ter achado correlativamente empobrecido
A metáfora desvendadora da voz ofuscada pela metáfora sufocante do tribunal, em virtude desta dissociação
A tríade inteira posta em lugar nos estudos precedentes se dando a ser reinterpretada em termos de alteridade
A primeira injunção: ser chamado a viver-bem com e para outrem em instituições justas
A existência de uma forma de comando que não é ainda uma lei, segundo uma sugestão de F. Rosenzweig em A Estrela da Redenção (Segundo livro)
O comando se fazendo ouvir na tonalidade do Cântico dos Cânticos, na súplica que o amante dirige à amada: “Tu, ama-me!”
O comando se fazendo lei e a lei interdição: “Tu não matarás”, porque a violência mancha todas as relações de interação, a favor do poder-sobre exercido por um agente sobre o paciente da sua ação
O curto-circuito entre consciência e obrigação, para não dizer entre consciência e interdição, de onde resulta a redução da voz da consciência ao veredicto de um tribunal
A necessidade de não cessar de remontar a pendente que traz desta injunção-interdição à injunção do bem-viver
A injunção se juntando então ao fenômeno da convicção que vimos Hegel acantonar na esfera da moralidade subjetiva, ao se prosseguir o percurso da ética até a escolha moral em situação
O momento de convicção não se substituindo à prova da regra, mas sobrevindo ao termo de um conflito de deveres, segundo a argumentação sobre a ética da decisão em situação
A consciência, ao se igualar assim à convicção, dizendo o lado de passividade: “Aqui eu me detenho! Eu não posso de outro modo!”
O momento de convicção marcando um recurso aos recursos ainda inexplorados da ética, aquém da moral, mas através dela
A invocação dos traços mais singularizantes da phronesis aristotélica para sublinhar o elo que prende a convicção ao fundo ético, através da camada dos imperativos
A phronesis, que inclui a regra direita na escolha do phronimos, sendo Gewissen, segundo a exclamação de Heidegger
O Dasein não sendo remetido apenas ao seu poder-ser o mais próprio, como no Heidegger de Ser e Tempo, se for guardada a definição de phronesis
A consciência, enquanto atestação-injunção, significando que estas “possibilidades as mais próprias” do Dasein são originariamente estruturadas pelo optativo do bem-viver
O optativo do bem-viver governando a título secundário o imperativo do respeito e juntando-se à convicção do julgamento moral em situação
A passividade do ser-injungido consistindo na situação de escuta na qual o sujeito ético se acha colocado em relação à voz que lhe é endereçada à segunda pessoa
O sujeito ético se reconhecendo injungido de viver-bem com e para os outros em instituições justas e de se estimar a si mesmo enquanto portador deste voto, ao se achar interpelado à segunda pessoa
A alteridade do Outro sendo a contrapartida, no plano da dialética dos “grandes gêneros”, desta passividade específica do ser-injungido
O terceiro desafio: a questão de se o Outro não é, de uma maneira ou de outra, outrem
A tentação forte de aproximar, por contraste, a alteridade da injunção daquela de outrem, enquanto Heidegger rebate a alteridade do apelo à estranh(eir)eza e à nulidade do ser-lançado, e reduz a alteridade da consciência àquela englobante do ser-no-mundo
A ultimidade da reconciliação em Hegel deixando o leitor perplexo quanto à identidade deste outro na “confissão expressa pela visão de si mesmo no Outro” (trad. Hyppolite, t. II, p. 198)
O perdão marcando já a entrada na esfera da religião, deixando Hegel seu leitor em suspenso
A última equivocidade quanto ao estatuto do Outro no fenômeno da consciência sendo talvez o que pede para ser preservado em última instância
A alteridade tranchada em um sentido clara e univocamente antropológico na metapsicologia freudiana: a consciência moral sendo um outro nome do supereu
O supereu se resumindo às identificações (sedimentadas, esquecidas, e em grande parte recalcadas) com as figuras parentais e ancestrais
A dimensão geracional sendo uma componente inegável do fenômeno da injunção e mais ainda daquele da dívida
A objeção à explicação genética de Freud de que o fenômeno da injunção e ainda menos o da dívida não são exauridos por ela
O soi não constituído originariamente em estrutura de acolhimento para as sedimentações do supereu, tornando impensável a interiorização das vozes ancestrais
A aptidão a ser-afetado no modo da injunção parecendo constituir a condição de possibilidade do fenômeno empírico de identificação
O modelo geracional da consciência recelando outra enigma mais indecifrável: a figura do ancestral, para além daquela dos pais, iniciando um movimento de regressão sem fim
O ancestral se excetuando do regime da representação, como verifica sua captura pelo mito e pelo culto
A pietas de um gênero único unindo assim os vivos e os mortos, refletindo o círculo do qual o ancestral tira a autoridade de sua voz
O ancestral, figura geracional do Outro, sendo o intermédio pelo qual a injunção se precede a si mesma
A oposição, à redução, característica da filosofia de M. Heidegger, do ser em dívida à estranh(eir)eza ligada à facticidade do ser no mundo, de E. Levinas, de uma redução simétrica da alteridade da consciência à exterioridade de outrem manifestada em seu rosto
A oposição obstinada ao caráter original e originário do que aparece como a terceira modalidade de alteridade: o ser-injungido enquanto estrutura da ipseidade
A injunção pelo outro não sendo solidária da atestação de si, perdendo seu caráter de injunção, por falta da existência de um ser-injungido que lhe faça face à maneira de um respondente
A injunção sendo originariamente atestação, sob pena de a injunção não ser recebida e de o soi não ser afetado no modo do ser-injungido
A unidade profunda da atestação de si e da injunção vinda do outro justificando o reconhecimento da especificidade irredutível da modalidade de alteridade correspondendo, no plano dos “grandes gêneros”, à passividade da consciência no plano fenomenológico
A necessidade de manter uma certa equivocidade no plano puramente filosófico do estatuto do Outro, se a alteridade da consciência deve ser tida por irredutível àquela de outrem
O filósofo devendo confessar que não sabe e não pode dizer se este Outro, fonte da injunção, é um autrui que se possa avistar ou que possa desavistar, ou os antepassados cuja dívida é constitutiva, ou Deus – Deus vivente, Deus ausente – ou um lugar vazio
O discurso filosófico se detendo nesta aporia do Outro