Data: 2024-10-09 16:31
O ponto central da phronesis é o que Aristóteles, na Ética a Nicômaco, identifica como uma aisthesis prática, uma visão prática ou “percepção” que revela a arche e o telos finais da praxis, ou seja, a situação concreta da ação em toda a particularidade de sua existência. A phronesis, como Aristóteles coloca, “diz respeito ao que é último [eschatou], e esse é o objeto da praxis [to prakton]” (Ética a Nicômaco, 1142 a24). No entanto, o tipo de aisthesis em questão não é o da mera percepção sensorial de objetos sensoriais, mas é algo como o tipo de aisthesis pelo qual “percebemos que a figura última [eschaton] na matemática é um triângulo”. Duas coisas distinguem o tipo de aisthesis pertencente à matemática: Primeiro, percebemos o objeto — a figura do triângulo — como um todo; e segundo, nossa percepção chega a um tipo de fim ou parada (stesetai) nessa percepção.
Aristóteles enfatiza, entretanto, que “o termo aisthesis se aplica em um sentido mais completo à intuição matemática do que à phronesis; a intuição prática desta última pertence a uma espécie diferente” (EN, 1142 a30). A aisthesis intrínseca à praxis claramente não pode ser a mesma que a aisthesis em ação na matemática, dado que os objetos da matemática e da geometria são imutáveis e universais. Por outro lado, o tipo de percepção encontrado na phronesis deve pertencer à praxis ela mesma em toda sua particularidade e contingência. Como Heidegger observa, não é uma visão teórica ou contemplativa, não é um “mero olhar”, mas um “olhar circunspectivo” (umsichtiges Hinsehen: GA19, 163) que é guiado antecipadamente pelo fim da eupraxia, o agir bem. Esse fim não é um bem particular ou determinado, mas o bem mais elevado para a existência humana como um todo (to eu zen holos: EN, 1140 a28). A boa circunspecção vê uma situação não apenas em um aspecto determinado, mas, acima de tudo, com relação a esse bem mais geral, como um bem não apenas para mim, mas para os seres humanos em sua pluralidade e pertencimento ao mundo juntos (EN, 1140 b7-21). No entanto, para Aristóteles, o bem não é universal, mas relativo à situação finita e às circunstâncias do ator (cf. EN, 1096 a11ff.). A visão da situação deve, portanto, ser circunspectiva, ao mesmo tempo abrangente e aberta. No entanto, essa circunspecção tem algo em comum com a aishtesis matemática, pois ela percebe seu objeto como um todo e chega a um fim ou para nessa percepção. Como diz Heidegger, o que a phronesis deve perceber é toda a situação fática dentro da qual temos de agir, e essa situação, como limite último dessa percepção, também constitui o fim ou “fatos últimos” dentro dos quais a deliberação (como uma realização do logos) pode ocorrer. Assim, é toda a situação fática da ação, a situação como um todo em sua particularidade única, e não qualquer objeto sensorial específico, que constitui o eschaton da aisthesis prática.
Mas qual é exatamente o papel da aisthesis prática na phronesis? A phronesis é descrita como uma hexis meta logon: ela ocorre por meio da deliberação, de falar sobre algo no logos.1) Essa deliberação segue a forma de um “silogismo” prático ou dedução. No entanto, como Heidegger enfatiza constantemente em sua interpretação do Livro VI, é crucial ter em mente que esse silogismo, como a maneira pela qual a phronesis se desdobra, não é algo realizado independentemente de nossas ações.2) O silogismo prático é o que acontece na e como praxis, é praxis em sua própria realização, no movimento de seu desdobramento e atualização. Um silogismo prático consiste nos seguintes passos: (1) A ação particular ou o fim imediato desejado, isto é, mantido antecipadamente em uma prohairesis (em prol de algum fim ou bem posterior, um hou heneka ou agathon que desejamos e estabelecemos via boulesis) (cf. EN, 1111 b10ss. 1113 a15ss.) é tal e tal (premissa maior); (2) A situação concreta é esta (premissa menor); (3) Portanto, agirei da seguinte maneira (conclusão) (GA19, 159). No entanto, não é apenas a premissa menor — isto é, o que quer que seja revelado no momento da aisthesis prática — que primeiro tem de ser dada para que a deliberação ocorra. A premissa maior — o fim projetado ou pretendido — também precisa ser dada; de fato, ela é anterior e até parece organizar a própria aisthesis prática: Eu “vejo” a situação atual à luz de um fim projetado. Assim, encontramos os seguintes momentos intrínsecos à praxis: (1) o fim particular ou a ação projetada ou “escolhida antecipadamente” (prohairesis) como o objetivo específico do desejo; (2) a revelação da situação fática, por meio de uma aisthesis prática, com relação a esse fim; (3) o fim projetado como modificado por meio da deliberação, esse terceiro momento marcando o início de uma ação particular, o momento da deliberação e decisão corretas (orthotes boules) quando o desejo é corretamente direcionado para a ação apropriada de acordo com o logos daquele que delibera (EN 1142 b1 ff. ). O logos, portanto, pertence à ação; a própria ação, se apropriada, deve se desdobrar como uma verdadeira revelação (aletheia) que é homologos lei orexei, homóloga ao desejo (EN, 1139 a30). Esse momento em que a deliberação foi realizada corretamente e está conclusivamente direcionada para o fim desejado é o momento do julgamento que permite uma decisão. Heidegger, portanto, traduz boule como “determinação aberta” ou “abertura resoluta” (Entschluß, Entschlossensein), compreendendo a “transparência” (Durchsichtigkeit) de uma ação. “Na medida em que essa abertura resoluta foi de fato apropriada e alcançada, ou seja, na medida em que estou abertamente resolvido, a ação está aí em sua possibilidade mais extrema.” A abertura aqui significa uma revelação, sendo resolvida em uma certa revelação. No entanto, essa conclusão do silogismo, indica Heidegger, também é um fechamento (Schluß) ou um fim: “não é uma proposição ou um conhecimento, mas a ruptura de quem está agindo como tal [das Losbrechen des Handelnden als solchen]” (GA19, 150-51).3)
PS: MCNEILL, William. The Glance of the Eye. Heidegger, Aristotle, and the Ends of Theory. New York: SUNY, 1999