Data: 2024-11-19 13:33
Enquanto para Descartes os conceitos são inatos, Locke recusa-os terminantemente. Segundo ele, a faculdade cognitiva do homem é como uma folha em branco,1) devendo ser toda “escrita” de fora a fim de chegar ao conhecimento. Essa “escritura”, conforme Locke, acontece exclusivamente pela experiência.2) Ele distingue as ideias na mente e as qualidades no corpo. Àquilo que a consciência percebe em si mesma chama ideias; estas são produzidas na consciência por certas forças nas coisas, forças que denomina qualidades.3) Em seguida, distingue as qualidades primárias e as secundárias. As primárias são as qualidades accessíveis a mais de um sentido. Assim a forma de uma maçã, que pode ser percebida pela vista e pelo tacto. A escolástica falava nesse caso de sensibilia communia. As qualidades secundárias, pelo contrário, chamadas pela escolástica sensibilia própria, são os objetos próprios de cada sentido, como, digamos, a cor de uma maçã em relação à vista, o odor com referência ao olfato.
Conforme Locke, as ideias das qualidades primárias são objetivas, e subjetivas as secundárias. A água de certa temperatura pode produzir na mão de alguém a sensação de calor, enquanto causa na mão de outro o sentimento de frio. Determinada figura, porém, nunca pode causar numa pessoa a ideia de quadrado, e noutra a de esfera.
À primeira vista, essa distinção parece assaz inocente. Não é verdade, contudo. A discriminação das qualidades entre secundárias e primárias inclui, implícita, uma teoria da essência do conhecimento humano. Porque, se o conhecimento for concebido como um modo de existir, o que quer dizer como a presença imediata do sujeito cognoscente a uma realidade presente, impossível afirmar que as qualidades primárias das coisas são objetivas e as secundárias não. Na presença imediata do sujeito cognoscente a uma maçã, tanto a forma como o odor ou a cor são realidades presentes, ou seja, objetivas. Locke, no entanto, afirma que só a forma é objetiva e não o odor ou a cor. Que quer significar tal coisa ?
Isso implica que o conhecimento não será concebido como presença imediata do cognoscente a uma realidade presente. Nesse caso, porém, não resta à teoria do conhecimento humano outra possibilidade senão considerá-lo como representação puramente passiva de um mundo “separado” do cognoscente. Nessa concepção o sujeito cognoscente não é entendido como existência, mas como sujeito passivo, sem mundo, sendo este concebido como uma coleção de coisas-em-si (Dinge-an-sich, monde-en-soi), como realidade bruta e, portanto, como um mundo em que o sujeito cognoscente não está envolvido, no qual não vive e com o qual, em princípio, nada tem a ver. Só então se pode dizer que unicamente as qualidades primárias são objetivas, o que implica que só o quantitativo é representado “com exatidão”. No que se refere às qualidades secundárias, Locke julga impossível uma representação exata,4) porque o cognoscente a estraga com “misturas subjetivas”.5)
Existem, sem dúvida, diferenças entre Descartes e Locke, mas fundamentalmente ambos concordam no que se refere à definição do conhecimento humano: conhecimento é uma representação-num-sujeito-sem-mundo de um mundo-separado-do-sujeito, e o sistema de representações objetivas é o das ciências naturais, de vez que só as ciências naturais operam com as categorias da quantidade. Os objetos diretos do conhecimento humano são tanto para Descartes como para Locke as próprias ideias, e o “problema crítico” formula-se então como a pergunta acerca da existência real no “mundo exterior” daquelas coisas cujas ideias são julgadas presentes no “mundo interior”.
PS: LUIJPEN, Wilhelmus Antonius Maria. Introdução à fenomenologia existencial. Tr. Carlos Lopes de Mattos. São Paulo: EDUSP, 1973