* 1. A Estrutura da Via Cartesiana
A expressão “caminho cartesiano” em Husserl é ambígua, pois sua filosofia surge como um cartesianismo radicalizado e, ao mesmo tempo, um cartesianismo invertido, mas pode ser recapitulada em quatro pontos principais.
O primeiro ponto é a exigência de apoditicidade do ponto de partida, segundo a qual a filosofia deve ser uma ciência absolutamente fundamentada, edificada a partir de um começo absoluto (ou um “ponto de Arquimedes”), o qual deve residir em uma evidência absoluta, ou seja, indubitável e sem pressupostos.
O segundo ponto é a constatação de que nenhum conhecimento transcendente do mundo satisfaz a essa exigência, pois a crença na existência do mundo, que é o fundamento de todo conhecimento mundano, não possui evidência absoluta; consequentemente, o filósofo que começa absolutamente deve exercer a epochè – ou seja, deve colocar fora de circuito – a crença no mundo e, por extensão, todo conhecimento do mundo, mesmo o de natureza científica.
O terceiro ponto é a permanência de uma conhecimento admissível após a suspensão de todo conhecimento transcendente do mundo: Husserl responde que o cogito permanece como objeto de conhecimento imanente e absolutamente evidente, constituindo o ponto de partida para a filosofia.
O quarto ponto esclarece que o cogito em Husserl não revela uma substância, mas sim uma evidência, e não se resume à *res cogitans*, mas sim desdobra a unidade *cogitatio-cogitatum*.
O cogito intencionalmente carrega consigo, não na imanência real, mas na imanência pura, o mundo inteiro como seu cogitatum, o qual passa a fazer parte da esfera de evidência absoluta, juntamente com a *cogitatio*, da qual é o correlato objetivo.
Dessa forma, o mundo, embora suspenso pela *epochè*, continua presente para o filósofo, porém, não em seu valor original, sendo ganho como “fenômeno” do eu, em vez de ser perdido.
* 2. As Insuficiências da Via Cartesiana
A primeira deficiência tradicionalmente atribuída à via cartesiana é que a redução transcendental é apresentada como uma peneira que separa o “joio do bom grão”, sugerindo que algo é perdido (o mundo) e algo é retido (a consciência) como um resíduo.
Husserl ameniza essa perda ao enfatizar que o mundo não se perde, uma vez que, como correlato intencional do cogito, ele é incluído no campo de investigação do fenomenólogo.
As seções III e IV das Ideias I confirmam que a análise constitutiva se estende aos objetos transcendentes, pois, embora não façam parte da imanência real, são integrados à imanência pura.
A crítica reside no fato de que o mundo é apreendido apenas como “fenômeno”, ou seja, como “representante subjetivo,” sugerindo que, reduzido ao seu status de *phainomenon*, ele seria despojado de seu sentido de transcendência, passando a ser considerado excluído.
A deficiência não está em limitar-se à exploração da componente “realmente imanente” da consciência (o que seria insustentável, já que o caminho cartesiano reconhece a possibilidade de posicionar a existência de objetividades não realmente imanentes), mas em não explicitar a diferença entre o caráter realmente imanente de algumas objetividades e o caráter “transcendente” de outras, dentro do conjunto de todas as objetividades promovidas à dignidade da evidência descritiva.
No caso das objetividades “transcendentes” intramundanas, a análise da correlação noético-noemática revela como é constituído seu caráter de objeto, mas não necessariamente como é constituído seu caráter de coisas, o qual exige mais do que o ato de doação-recepção, demandando a integração em um encadeamento de tais atos, ou seja, o desdobramento de uma “experiência.”
A deficiência da via cartesiana paradoxalmente reside no fato de que as Ideias I não dão conta suficientemente do tipo particular de constituição das objetividades que se dão com um sentido de transcendência apenas mediante sua integração em uma experiência.
Ao reduzir o mundo ao status de fenômeno, a via cartesiana pode levar à falsa ideia de que a *epochè* é provisória e que a *doxa* do mundo poderia ser recuperada após uma justificação adequada.
Husserl adverte contra a tentação de conceber a *epochè* como meramente provisória, uma vez que o iniciante (no qual Husserl se inclui, reivindicando em sua maturidade o nome de “verdadeiro principiante”) é tentado a pensar que o momento em que se terá novamente experiência e pensamento no modo natural e se estará satisfeito com as ciências em seu modo natural acabará por retornar.
Não se pode prejulgar que a redução transcendental deva ser guiada pela ideia de que a fé perceptiva deve ser restabelecida em seus direitos, pois tal perspectiva reduziria a *epochè* ao simples papel de esclarecimento das ambiguidades da fé perceptiva.
O segundo aspecto da dificuldade não se refere mais ao mundo, mas ao status da consciência a ele relacionada.
A redução, pensada como perda que faz surgir um resto ou resíduo, possui apenas um caráter restritivo e limitativo, e, portanto, não pode aspirar à universalidade, pois se limita à exclusão da região natureza e deixa intocada a região consciência.
O § 49 das Ideias I chega a caracterizar a consciência absoluta como “resíduo do aniquilamento do mundo.”
Embora Husserl afirme que “nada perdemos, mas ganhamos a totalidade do ser absoluto,” é difícil ver o todo do ser absoluto naquilo que é apenas um resíduo, ou seja, uma região ou parte do ser.
Husserl reconhece na Krisis que a via cartesiana coloca em dúvida “o que se pôde ganhar por isso,” pois o que pode “restar” senão uma parte? E o que pode ser a consciência como parte, senão a parte psicológica do mundo?
Husserl adverte: “Corre-se também o risco, como mostrou o modo como minhas 'Ideias' foram recebidas, de recair muito facilmente, e quase desde os primeiros começos, por uma tentação imediata e muito grande, na atitude natural.”
O “salto” realizado na via cartesiana entrega um ego tão purificado que se torna um ego vazio, cuja única forma de preenchê-lo seria transpor para ele o conteúdo das análises realizadas sob o regime da atitude natural.
A segunda insuficiência da via cartesiana reside em sua incapacidade de alcançar a subjetividade em sentido pleno.
Por um lado, a via cartesiana não atinge a intersubjetividade, a qual Husserl reconhece como constituinte da subjetividade em sentido pleno.
Os outros sujeitos ou cossujeitos são dados apenas por “indicação” ou “apresentação,” por meio das coisas reais que eu experiencio como sendo seus corpos.
Na qualidade de fenomenólogo, se não tenho mais o direito, no modo natural, de “atribuir valor” de realidades existentes às coisas, também não tenho o direito de atribuí-lo aos corpos orgânicos alheios.
O motivo para a indicação da vida psíquica alheia desaparece, pois esta só existe para mim na medida em que é apreendida por seu corpo orgânico.
Na via cartesiana, “uma fenomenologia transcendental só poderia ser possível, ao que parece, a título de egologia transcendental. Enquanto fenomenólogo, sou necessariamente um pensador solipsista, embora não o seja no sentido ridículo comum enraizado na atitude natural, sou-o, no entanto, no sentido transcendental.”
Husserl observa que “durante anos, eu não via nenhuma solução para transformá-la em redução intersubjetiva.”
Por outro lado, a via cartesiana também não leva à plena subjetividade própria, que não é apenas uma subjetividade no presente, mas inclui uma dimensão de passado e de futuro.
Nas lições de Filosofia Primeira (1923/24), Husserl mostra que a vida passada e futura da subjetividade só é concebível por meio de uma dupla redução.
Uma lembrança me oferece o transcendental de duas maneiras: em primeiro lugar, o “eu me lembro” subsiste como meu vivenciado atual percebido na reflexão, mesmo que eu suspenda o universo inteiro ou iniba toda a crença na experiência sobre ele.
Em segundo lugar, nesse vivenciado presente, se representa para mim, por exemplo, o passeio de ontem ao castelo, que é um evento do passado, implicando que o vivenciado “eu me lembro” inclui o “eu percebi” e o ato passado inclui um “eu quis e agi.”
Embora o castelo, meu corpo, etc., como existência passada, sejam nulos ou ilusão transcendental, a continuidade do perceber que dava valor de realidade perceptiva ao meu caminho e objetivo não é abolida pela abstenção de todo julgamento sobre o ser mundano.
“Cada lembrança admite, evidentemente, uma dupla redução transcendental: de uma resulta a lembrança como meu vivenciado transcendental presente, enquanto a segunda, que intervém de maneira singular no conteúdo reprodutivo da lembrança, revela um fragmento de minha vida transcendental passada.”
Algo análogo é válido para a obtenção do futuro do fluxo do vivenciado transcendental.
O mundo passado e futuro em sua temporalidade objetiva representa o “fio condutor” necessário para revelar minha vida transcendental passada e futura; se não houvesse para mim agora um mundo passado ou futuro no qual eu vivi ou viverei, também não haveria para mim vida transcendental passada e futura.
Não se pode, portanto, “suspender pura e simplesmente” o horizonte do mundo, uma vez que a esfera transcendental pura (por exemplo, a do passado) só é alcançada concebendo a si mesmo primeiramente em seu horizonte de passado como um eu humano que viveu em seu mundo circundante agora passado e em relação intencional com ele.
A via cartesiana apresenta uma terceira insuficiência, ligada à exigência de um começo absoluto da filosofia.
Nas Cinco Lições de 1907 e nas Ideias I, Husserl reivindica evidência absoluta para a subjetividade alcançada pela via cartesiana, mas nas lições de Filosofia Primeira de 1923/24 e nas Meditações Cartesianas, ele abandona essa pretensão, adiando a prova de sua doação absoluta.
Isso levanta a questão se a atitude de Husserl é mera procrastinação ou se qualquer tentativa de evidenciar um conteúdo apodítico no cogito que sirva como ponto arquimediano é impossível por princípio, ou seja, se o cogito, enquanto temporal, encerra algum conteúdo absoluto apreensível na evidência.
É verdade que o próprio ego transcendental e a própria vida gozam do privilégio de um dado primeiro e originário para mim, pois só tenho acesso direto a mim mesmo pela experiência de mim mesmo, através da percepção, lembrança e expectativa de mim mesmo.
A subjetividade alheia só pode ser experienciada no modo mediato da indicação, implicando uma intencionalidade de segundo grau e mediata.
A busca por um conteúdo apodítico deve ser dirigida ao próprio ego transcendental, que me é dado originariamente e é o único a sê-lo, e não à subjetividade alheia.
No entanto, a subjetividade transcendental em geral é dada em graus de imediatidade e mediatez relativas, e mesmo a imediatidade com que sou dado a mim mesmo tem seus graus.
Sou dado a mim mesmo de forma absolutamente imediata apenas no presente de minha vida, do qual tenho a experiência mais imediata, a percepção.
De meu passado e futuro, tenho apenas a lembrança que os evoca e a expectativa que os antecipa, o que já implica mediatezes intencionais.
O passado e o futuro de minha vida transcendental própria são, de certa forma, como a subjetividade alheia: são dados apenas mediatamente.
Para Husserl – desde os anos vinte – o conteúdo do passado e do futuro de meu fluxo de vivenciado não pode ser caracterizado como apoditicamente evidente, pois a recordação e a expectativa podem ser enganosas por princípio.
Apenas a forma do passado e do futuro, ou seja, a forma temporal do fluxo do vivenciado, possui apoditicidade.
A busca por um conteúdo apodítico no cogito, portanto, restringe-se à consideração do presente vivo e fluente.
Uma análise mais detalhada revela que a esfera do presente também possui uma estrutura análoga, com distinção entre dados intencionais imediatos e mediatos.
O ponto de chegada é o ponto-limite flutuante do agora puro, ou, correlativamente, a pura percepção de si desse agora momentâneo originariamente vivo, e uma fase de retenção original e de uma protensão original, cuja intencionalidade é mediata.
O que foi dito sobre a subjetividade alheia e a subjetividade própria pode ser dito sobre o presente vivo, distinguindo-se o “ponto-limite do agora” e as retenções e protensões que o acompanham, mesmo que se fale de uma percepção de si concreta e de um presente concreto.
O presente vivo e fluente, na medida em que só é apreendido como fluente na retenção e protensão, revela uma estrutura mediata, tornando a apoditicidade problemática também nesse nível.
Restam apenas dois momentos apodíticos de meu cogito: a forma temporal e a existência de meu eu, mas nenhum desses dois momentos é um conteúdo.