* A análise dos fenômenos da memória, que Ricœur desenvolve na primeira parte de A Memória, a História, o Esquecimento (*MHE*), segue uma ordem precisa, pautada pelas perguntas “o quê, como, quem?”.
* A investigação começa com o “momento objetivo” (*MHE 4*) da memória, ou seja, com os suvenires (lembranças), que se apresentam como dados irrefutáveis (agradáveis ou desagradáveis), espelhando o início da *A Falibilidade do Humano* na síntese transcendental.
* A prioridade intencional (a pergunta “de que há lembrança?” ou “de que se lembra?”) sobre a pergunta egológica (“de quem é a memória?”) (*MHE 3*) é uma escolha com consequências significativas.
A análise intencional tem o mérito de prevenir contra a tentação de reduzir a memória ao domínio da imaginação.
Essa abordagem preserva a diferença eidética entre duas visadas intencionais irredutíveis: a da memória, que visa a anterioridade, e a da imagem, que visa a ficcionalidade.
A principal dificuldade é compreender a função propriamente temporalizante da lembrança, refletida no enunciado de Aristóteles: “a memória é do tempo,” o qual Ricœur adota como estrela guia de toda a sua investigação.
Aristóteles pavimenta o caminho para a fenomenologia da memória ao convidar à descrição dos fenômenos mnemônicos com foco nas “capacidades das quais eles constituem a efetuação 'feliz'” (*MHE 26*), e não nas deficiências ou falhas da memória.
O que se procura é pensar uma “memória feliz” ou “saudável,” cuja imagem adquire novas valências no decorrer da análise, representando as diversas facetas da capacidade fundamental de se lembrar.
A tarefa específica da fenomenologia da memória é dar conta das múltiplas formas pelas quais o “ser-do-passado” pode se manifestar.
Essa tarefa apresenta um aspecto fragmentado, mas possibilita a constituição de uma tipologia baseada nas perguntas “de que se lembra?”, “como se lembra?” e “quem se lembra?”.
Mesmo a análise dos noemas (o conteúdo da lembrança) impõe a introdução de diferenças na multiplicidade dos suvenires.
Há uma questão sobre a ênfase a ser dada: nos eventos singulares e não repetíveis (como enfatiza Claude Romano em sua “hermenêutica eventuária”) ou nas semelhanças típicas entre fatos e objetos que tornam possível a “orientação” e o “reconhecimento”.
Ao considerar as formas como a lembrança adere (ou não) ao passado, Ricœur evidencia várias polaridades oposicionais importantes, a começar pela polaridade bergsoniana da “memória-hábito” e da “memória-lembrança”.
Em segundo lugar, adiciona-se a polaridade da evocação e da busca, que opõe os suvenires espontâneos (incluindo seu substrato cortical) ao “esforço de memória” (que pode ir da perlaboração freudiana, superando resistências como a compulsão de repetição, até as performances atléticas, ainda que vãs, da antiga *ars memoriae*).
Neste estágio inicial, a distinção husserliana entre “lembrança primária” (“retenção”) e “lembrança secundária” (“recordação,” “reprodução”) é preponderante, pois ancora solidamente a fenomenologia da memória na fenomenologia da consciência íntima do tempo, endossando a tese aristotélica.
Este ancoramento temporal é arriscado, pois parece confirmar o privilégio do “presente vivente,” criticado por Jacques Derrida em *A Voz e o Fenômeno* como o cerne da fenomenologia husserliana.
Para Ricœur, a noção de “presente vivente” tem múltiplas faces que não se resumem ao ato de percepção (lugar primordial da doação “em carne e osso”) e que, *a fortiori*, não se subordinam à ideia de “metafísica da presença”.
A iniciativa (já discutida no capítulo 7), a fruição e o sofrimento são aspectos desse presente, sendo fundamental para a fenomenologia hermenêutica reconhecer que “a fenomenologia da percepção não tem… nenhum direito exclusivo sobre a descrição do presente. O presente é também o do fruir e do sofrer e… presente de iniciativa” (*MHE 40*).
A fenomenologia da lembrança é concluída com a introdução de uma terceira polaridade: a da reflexividade e da mundanidade.
Seguindo Edward S. Casey, Ricœur explora o vasto intervalo entre os atos de lembrança focados no polo egológico (lembrança do que me fizeram, do que eu senti) e o polo mundano (lembrança do que aconteceu, do que os outros fizeram, etc.).
Essa polaridade realça novamente a “memória feliz” (*MHE 45*), pois “poder se lembrar” é, em última análise, mais importante do que o medo de esquecer ou o dever de comemorar.
O intervalo de sentido vai desde os suportes mais humildes da memória (fotos, nós em lenços, lembretes, etc.), centrados no aviso (*Reminding*) (“Dar comida ao gato!”, “Foi neste refúgio de alta montanha que passei a noite!”), até os múltiplos atos de reconhecimento (*Recognizing*: “É ele mesmo!”), passando pelo compartilhamento de lembranças comuns (*Reminiscing*: “Você se lembra de que…?”).
A memória pode ser qualificada como “feliz” na medida em que possibilita o “pequeno milagre do reconhecimento” cotidiano.
Apesar de ser “pequeno,” esse “milagre” é desconcertante, pois o reconhecimento “reveste de presença a alteridade do passado,” e Ricœur destaca que “este pequeno milagre é ao mesmo tempo uma grande armadilha para a análise fenomenológica” (*MHE 47*).
A armadilha reside na possível confusão entre o passado reconhecido e o passado percebido.
A tarefa da análise fenomenológica dos atos de reconhecimento é reconhecer uma “alteridade complexa” (*MHE 47*) que vai da familiaridade absoluta (“É ele mesmo!”) à inquietante estranheza do *déjà vu* (“É um que voltou”).
No outro extremo da cadeia, estende-se o vasto domínio dos fenômenos mnemônicos que envolvem o corpo próprio, o espaço e o mundo.
Neste polo “mundano,” a fenomenologia dos suvenires começa com a memória corporal (do corpo habitual ao corpo eventuário) e se eleva à memória dos lugares, enriquecendo a abordagem de Heidegger sobre a espacialidade existencial do *Dasein* no $\S$ 24 de *Ser e Tempo*.
Isso confirma o vínculo constitutivo entre o conceito hermenêutico de sentido e o fenômeno da orientação (com a tutela de Hermès, mencionada na introdução geral da obra).
“É na superfície da terra habitável que nos lembramos de ter viajado e visitado lugares memoráveis” (*MHE 49*).
A palavra mais importante nessa declaração é “habitar,” porque “os lugares habitados são por excelência memoráveis” (*MHE 51*) e, mais profundamente, porque “poder se lembrar” e “poder habitar” são atos conexos.
Em certas culturas (como os aborígenes australianos estudados por David Abram), o vínculo entre “se lembrar” e “habitar” é tão forte que a delocalização equivale a uma perda de identidade mortal, estando a memória inseparável da paisagem.
A imagem usada por Ricœur para distinguir o agir e o perceber (a memória “tem seus nós e seus ventres, suas rupturas e seus lançamentos” (*MHE 41*)) pode ser aplicada à memória em si.
Pode-se traçar um paralelo entre a análise dos enunciados metafóricos em A Metáfora Viva e a importância da espacialidade em A Memória, a História, o Esquecimento, pois ambas as funções (a memória espacial e a metáfora viva) servem para a descoberta de um mundo habitável.
A questão se levanta se o mundo lembrado não estaria amassado de significações metafóricas – um mundo habitável e não o deserto do que simplesmente “é o caso” – o que se aproxima da “verdade metafórica,” a qual remete a “uma experiência de realidade na qual inventar e descobrir deixam de se opor e onde criar e revelar coincidem” (*MV 310*).
A problemática da espacialidade é notavelmente expressa no esboço de uma fenomenologia do espaço habitável.
A parte epistemológica da obra se inicia com a análise fenomenológica das diferentes “colocações” (*places*) que os seres de carne ocupam, perdem e reencontram (*MHE 191*).
Ricœur discerne nessas colocações modalidades do ato de habitar, cujas polaridades (“residir e se deslocar, abrigar-se sob um teto, ultrapassar um limiar e sair para fora” (*MHE 185*)) podem ser relacionadas ao casal “Héstia-Hermès” no pensamento grego arcaico.
O que é válido para a “odisseia do espaço alternadamente vivido, construído, percorrido, habitado” (*MHE 191*) também é válido para os deslocamentos e transferências de sentido veiculados pelas metáforas vivas.
A fenomenologia da memória deve enfrentar a dificuldade considerável representada pela noção de “lembrança-imagem,” que não pode ser simplesmente excluída da memória.
A fenomenologia da lembrança e a fenomenologia da imagem (incluindo as modificações da consciência imagética, da alucinação à ficção) invadem-se mutuamente, como demonstra o exemplo de Husserl.
Apesar da diferença eidética que impede a confusão entre imaginar e lembrar, é impossível ignorar o “curioso paralelismo” (*MHE 65*) que as conecta.
“Quer seja simplesmente evocado como presença, e a esse título como *pathos*, quer seja ativamente procurado na operação do aviso que conclui a experiência do reconhecimento, o suvenir é representação, representação” (*MHE 240*).
Essa tese é crucial não apenas para a memória individual, mas também para a “representação” histórica do passado, o que Ricœur demonstra em sua epistemologia do conhecimento histórico.
Neste nível também, a dificuldade em distinguir a lembrança da imagem revela-se “o tormento da fenomenologia da memória” (*MHE 305*).