====== Romano (1999:56-63) – Causalidade e origem ====== //Data: 2025-10-26 15:00// ==== L’événement et le monde ==== #### A Explicação Causal de Todo Fato Intramundano * A suscetibilidade de todo fato intramundano, que se anuncia sob o horizonte do mundo, a uma explicação causal. * A ação que possui uma finalidade remetendo à totalidade dos fins efetivos ou possíveis de um indivíduo dado. * O evento que sobrevém e deve ter necessariamente suas causas, que remetem a outras causas encadeadas em um contexto significante. * O questionamento não pertinente de uma causa primeira, de uma arkhe, de um princípio, ou de uma fim último da ação humana. * O modo como a questão da causalidade se coloca a partir de um evento singular, não como uma questão de direito. * A forma que a questão reveste na "dialética transcendental" da Crítica da razão pura: "há ou não há uma causa primeira do que acontece, que por sua vez não pressupõe, segundo uma lei da natureza, uma causalidade antecedente?". * A colocação da causalidade como uma questão de fato: * Todo evento singular, precisamente em tanto que singular, só pode ser identificado no interior de um contexto. * O evento que não tem somente uma causa, mas causas em número indefinido. * As causas que dependem da multiplicidade dos eventos que articulam o contexto. * A causalidade que aparece inesgotável em fato, mesmo que possa ser percorrida, em direito, na infinidade de suas ramificações. * A ilustração da inesgotabilidade factual da explicação causal a partir do evento singular: a queda da maçã. * A insuficiência da lei universal da gravitação como causa, por valer identicamente para todos os eventos submetidos à sua jurisdição. * As causas específicas para a queda da maçã como evento singular: * O amadurecimento do fruto. * A dependência do amadurecimento ao insolação do pomar onde a macieira cresceu. * A doçura do clima desta estação outonal tardia. * A variedade da maçã. * As condições atmosféricas (exemplo: a velocidade e intensidade do vento). * A clareza de que a explicação causal de todo fato intramundano singular é sempre possível em direito, mas permanece, de fato, inesgotável. * A inesgotabilidade factual da explicação causal pela intervenção de uma multiplicidade de causas cuja infinidade é impossível de abarcar. * A afirmação de Leibniz sobre a arqueologia causal de um fato contingente: * A arqueologia causal só termina com o percurso da totalidade das causas tal como está disposta na noção completa e primitiva do mundo para um entendimento criador. * Toda pesquisa causal só se esgota nesta ratio primeira e última do mundo, que permanece, inacessível a um entendimento finito. #### A Abstração Metódica na Ciência Clássica e a Desmundanização do Fato Intramundano * A necessidade da ciência clássica de isolar a causa, a única pertinente, da queda dos corpos em geral. * O isolamento que ocorre porque a ciência fez abstração prévia dos eventos que envolvem o fato singular em seu contexto e em uma trama causal inesgotável. * O preço da abstração metódica para a descoberta de uma "lei da queda dos corpos em geral". * O significado da abstração como restrição do contexto no qual o evento surgiu. * A restrição alcançada graças a uma experimentação metódica. * A experimentação que permite eliminar as variáveis não pertinentes para o cálculo de uma lei física (exemplo: o amadurecimento da maçã, a velocidade do vento). * O ato da ciência, para as necessidades de sua método, de se entregar a uma desmundanização do fato intramundano. * A eliminação, de sua trama causal, de todas as causas não pertinentes que interferem, na teoria, com o cálculo da lei, a única explicativa em termos científicos. * A necessidade de não mascarar o processo de desmundanização, que confere universal validade às prestações metódicas da ciência. * O caráter irredutível da fenomenalidade de todo evento considerado em seu contexto intramundano: a inesgotabilidade da trama causal. #### A Questão da Explicabilidade Causal do Evento em seu Sentido Eventual * A arqueologia explicativa, mesmo parcial e incompleta, à qual se presta a trama causal de todo fato intramundano, mesmo que seja inesgotável em direito. * A indagação se o evento, em seu sentido eventual, é suscetível de uma explicação causal. * Se, em caso afirmativo, tal arqueologia explicativa está à altura de sua eventualidade. #### O Surgimento An-árquico e a Transcendência do Evento à Causalidade Antecedente * O evento como puro começo a partir do nada. * O evento que, em seu surgimento an-árquico, se ab-solve de toda causalidade antecedente. * A distinção entre a preparação e a explicação: * O evento que pode ser preparado, prefigurado e ter uma ancoragem em uma história, tendo, tal como o fato intramundano, suas causas. * As causas que não explicam o evento. * O que as causas "explicam" é sempre e precisamente o fato, e não o evento em seu sentido eventual. * A possibilidade de pesquisar as causas de um encontro (exemplo: ocasião de uma festa, reunião política, universidade, mesma disciplina, etc.). * A causalidade puramente "física" (a presença de dois seres em um mesmo lugar). * O pano de fundo "psicológico" que se poderia tentar explicar. * Amigos e interesses intelectuais comuns constituindo uma "razão suficiente" para dar conta da atração mútua (exemplo: a juventude ou a pertença a um mesmo meio social). * A constituição de um começo de explicação por estas razões, mesmo que não deem conta "inteiramente" do evento do encontro. * A capacidade explicativa de tais "razões" se o evento do encontro se reduzisse à sua efetivação como fato. * O fato do qual há um sentido em pesquisar as causas, mesmo que sejam inesgotáveis em fato. * A impossibilidade de qualquer arqueologia causal fornecer a cifra ou esgotar o sentido do evento. * A ausência de "sentido" em pesquisar a causa do que é a própria origem do sentido para a aventura humana. * O que confere ao encontro seu caráter de evento: * A transcendência radical de sua própria efetivação. * A reconfiguração dos possíveis articulados em mundo. * A introdução, na própria aventura, de um sentido radicalmente novo. * O abalo, o transtorno completo da aventura e a modificação de todos os projetos anteriores. * A decisão, a cada vez, do próprio sentido da aventura a partir deste encontro não buscado nem decidido. * A consideração do encontro como simples fato (e não como evento) para que a pesquisa de causas ("físicas", "psicológicas", "sociológicas") não seja um contrassenso absoluto. * A única coisa que se pode dizer do evento é que ele tem sua causa em si mesmo, ou seja, em todo rigor, que ele não a tem. * A inclusão da citação: "Se me pressionarem a dizer por que a amava, sinto que isso só pode se expressar respondendo: porque era ela, porque era eu". * O inevitável desfecho de toda arqueologia explicativa de um encontro neste inexplicável. * O evento que não tem causa porque ele é sua própria origem: o que constitui seu verdadeiro sentido para a aventura humana. #### A Originalidade e a Temporalidade do Evento * A secessão do evento de todo fato anterior por seu próprio surgimento. * A advinda de si em si subtraída a todo horizonte de sentido e a toda condição prévia. * O evento que só se advém sob seu próprio horizonte. * O evento como puro jorro de si em si, imprevisível em sua novidade radical. * A instauração retrospectiva de uma cisão de todo o passado. * O nunca mais ser o mesmo mundo, com suas possibilidades e impossibilidades articuladas. * O evento que, ao se iluminar por sua própria luz e ao sobrevir fora de toda medida prévia, reconfigura a cada vez o mundo para aquele a quem ele sobrevém. * A distinção entre o fato e o evento quanto ao horizonte. * Toda coisa e todo fato sendo encontrados sob um horizonte, anunciando-se sob a luz de seu contexto. * O evento que nunca é encontrado sob um horizonte, sendo o horizonte de seu encontro. * A capacidade de todo fato e todo ente serem encontráveis no mundo se advêm no aberto de sua mostração. * O evento como aquilo que se abre a si mesmo, dando acesso a si. * O evento que, longe de se submeter a uma condição prévia, fornece a condição de seu próprio advento. * A incompreensão da auto-originação e absolvição do evento de toda causalidade antecedente sem uma análise de sua temporalidade. * As causas que, mesmo que se possa buscá-las, não explicam o evento por não estarem à sua medida. * A definição de uma causa: um fato, uma coisa ou um estado-de-coisas a partir do qual se efetua um possível pré-existente no horizonte do mundo. * O que constitui a eventualidade de um evento: * Não sua efetuação intramundana (que poderia, na verdade, dar lugar a uma etiologia explicativa). * A carga de possibilidades que ele porta em si e traz consigo. * A carga que o impede de se reduzir a um fato no mundo. * O evento que não cumpre um possível prévio, mas possibiliza o possível. * O evento que transtorna seu próprio contexto por seu surgimento an-árquico. * O sentido etimológico: eventum (o que advém) apresentando algo irremediavelmente excessivo em relação a todo factum (o "tudo feito", o cumprido, o acabado). * O excedente devido à carga de possibilidades que todo evento verdadeiro mantém em reserva. * O evento que transtorna o mundo ao reconfigurá-lo. * O evento que não pertence à efetividade do fato, mas à possibilidade, ou à possibilidade de tornar possível, à possibilização. * O evento distinto do fato que sobrevém no presente cumprido e definitivo. * O evento como o que se mantém em reserva em todo fato e toda efetuação. * A reserva que confere ao fato sua carga de possibilidades e, por conseguinte, de futuro. * A reserva que retransfigura o mundo até introduzir um excedente de sentido inacessível a toda explicação. * As causas do encontro, mesmo sendo determináveis, que não explicam em nada o encontro como evento. * A não explicação de seu teor de sentido eventual. * A não explicação do que, neste encontro, transtornou a quem ele ocorreu para sempre. * O evento que transcende irremediavelmente a trama causal na qual ele se inscreve, no entanto, como fato. * O evento que se origina a si mesmo, transcendendo sua própria efetuação e possibilizando o possível. * O sentido que só pode ser compreendido no horizonte que ele mesmo abriu ao surgir. * O sentido de origem (origo, [Ursprung->/definitions?search=Ursprung]): * O que se levanta (orior) e se eleva por um salto (Ursprung) que rompe com toda proveniência. * A fonte viva, o puro jorro distinto de toda causa (Ursache). * A causa que significa sempre o remeter a outra coisa ([Sache->/definitions?search=Sache]) de onde o resto procederia. * O evento que rompe a trama causal: * O contexto ("mundo" no sentido eventual) que não o explica. * O evento que, inversamente, ilumina seu próprio contexto conferindo-lhe um sentido que ele não prefigurava. * O mundo como a totalidade das possibilidades interpretativas a partir das quais os fatos se tornam compreensíveis. * A articulação mútua dos fatos e o sentido que eles tomam para o adventício. * O evento como aquilo que rompe o horizonte dos possíveis prévios. * A introdução de um sentido incompreensível à luz de toda explicação causal. * O evento que traz consigo seu próprio horizonte de inteligibilidade. * O evento que obriga o adventício a compreender de outra maneira a si mesmo e seu mundo. #### A Reconfiguração do Mundo e a Totalidade dos Possíveis * O evento que rompe com a ordem dos fatos e da efetividade. * O evento que introduz na aventura humana um sentido inacessível a toda etiologia. * A transformação pós-surgimento do evento: * O nunca mais ser como antes. * O nunca mais ser o mesmo mundo, com suas possibilidades abertas. * O surgimento que transtorna completamente o mundo do adventício. * A abertura de novas possibilidades e o fechamento correlativo de outras. * A indagação sobre a totalidade dos possíveis afetados pelo evento. * A aparente restrição a certos possíveis (exemplo: doença afetando a relação com o corpo, luto afetando a história com outrem). * A inexistência, para o adventício, de possíveis destacados. * O evento que, ao reconfigurar radicalmente certos possíveis, transtorna, a cada vez, o possível em totalidade. * O mundo que não é uma soma de possíveis independentes. * O mundo como a totalidade estrutural e hierárquica que articula os possíveis. * A articulação de toda compreensão e todo projeto de sentido em geral. * A ilustração pela doença: * A doença que não só altera a relação com o corpo. * A doença que transtorna o conjunto de tarefas, atividades, projetos. * O sentido dos projetos que é modificado pela doença. * O mundo que o evento desdobra, introduzindo uma deiscência, um hiato, a luz de um rompimento que nunca serão preenchidos. * O mundo que o evento transfigura completamente: * A possibilização diferente de seus possíveis. * A transformação de seus relações. * O transtorno de suas hierarquias. * A condição para elucidar o sentido de tal reconfiguração do mundo: elucidar o que se deve entender por "possibilidade". #### Evento e História: A Ruptura da Causalidade e a Constituição Interna do Tempo * A síntese das afirmações sobre o evento: * O evento que se liberta, em seu próprio sentido, de toda causalidade. * A causalidade que só pode se estabelecer entre fatos. * O evento que transcende toda efetividade e não é da ordem de um simples estado-de-coisas. * O evento que, em seu sentido propriamente eventual, projeta um mundo para o adventício, rearticulando a cada vez seus possíveis. * A objeção aparente: se tal síntese não impede de pensar alguma "relação" entre os eventos, um "encadeamento" causal, uma "história". * A objeção que só atinge seu objetivo se a história mesma for definida previamente como uma sucessão ou um encadeamento de eventos. * A verdadeira relação: não é a história que é um encadeamento de eventos. * Cada evento verdadeiro que, como tal, tem sua história, abre uma história. * A história que pode ser fechada quando as novas possibilidades suscitadas pelo evento tiverem sido "esgotadas". * O surgimento de outros eventos sem relação com esta história. * O conceito de história só pensável se a constituição interna do tempo for primeiramente posta em luz. * O rompimento radical dos tempos em seu caráter ab-soluto. * Os tempos cindidos uns dos outros, radicalmente dia-crônicos e não sincronizáveis. * A questão a ser deixada aberta: Qual conceito de "história" está à altura do conceito de evento tal como se tenta determiná-lo aqui? * A crucialidade e urgência do problema da temporalidade do evento no quadro das análises preliminares. * A necessidade de tentar precisar o sentido temporal do evento por contraste com o do fato intramundano. * O quarto traço distintivo que permite a separação entre estes dois fenômenos. ---- //PS: ROMANO, Claude. L’événement et le monde. Paris: PUF, 1998//