====== Butler – individualismo e corpo ====== //Data: 2025-03-11 11:54// O postulado de uma precariedade generalizada que questiona a ontologia do individualismo implica, ainda que indiretamente, certas consequências normativas. Não basta dizer que a vida, sendo precária, deve ser preservada. O que está em jogo são as condições que tornam a vida viável (sustentável), e os desacordos morais, portanto, invariavelmente se concentram em como essas condições de vida podem ser melhoradas e a precariedade reduzida, e na possibilidade de que isso aconteça. Mas, se é claro que tal perspectiva envolve uma crítica ao individualismo, como podemos começar a pensar em assumir a tarefa de reduzir a precariedade? Se a ontologia do corpo serve como ponto de partida para repensar a responsabilidade, é precisamente porque, por sua superfície e profundidade, o corpo é um fenômeno social: ele está exposto ao outro, sendo vulnerável por definição. Sua própria persistência depende de condições e instituições sociais, o que significa que, para "ser", no sentido de "persistir", ele deve confiar naquilo que está fora dele. Como a responsabilidade pode ser pensada a partir dessa estrutura socialmente ek-stática((Conceito extraído do pensamento de Martin HEIDEGGER (1889-1976), especialmente de sua obra principal, Ser e Tempo (1927), trad. fr. François Vezin, Gallimard, Paris, 1986. A ideia de ek-stase, em Heidegger, é compreendida "na relação originária e fundadora que o ser mantém com o tempo". "As três ek-stases temporais do passado, presente e futuro aparecem como as direções desse movimento pelo qual a temporalidade coloca o ser fora de si mesmo", Enciclopédia Filosófica Universal, vol. II, "As noções filosóficas. Dicionário", dirigido por Sylvain AUROUX, PUF, Paris, 2ª edição, 1998. (N.d.T.))) do corpo? Enquanto algo que, por definição, cede à força e ao moldamento sociais, o corpo é vulnerável. No entanto, ele não é uma simples superfície na qual significados sociais são inscritos, mas aquilo que sofre e desfruta da exterioridade do mundo enquanto responde a ela, uma exterioridade que define a disposição, a passividade e a atividade do mundo. Claro, a ferida é uma das coisas que podem acontecer a um corpo vulnerável e que às vezes acontecem (e não há corpos invulneráveis), mas isso não significa que a vulnerabilidade do corpo seja redutível ao que o torna sujeito a ferimentos. Que o corpo invariavelmente colide com o mundo exterior é um sinal do incômodo geral que constitui uma proximidade indesejada em relação aos outros e a circunstâncias que não controlamos. Esse "colidir com" é uma das modalidades que definem o corpo. E, no entanto, essa alteridade incômoda com a qual o corpo colide é frequentemente o que anima a capacidade de responder (responsiveness ((Responsiveness: trata-se aqui da disposição da sensibilidade para formar afetos em resposta a um evento ou aos eventos que constituem o mundo. Este termo será traduzido aqui, conforme as exigências do contexto, às vezes como "resposta" ou "capacidade de responder", outras vezes como "sensibilidade moral" ou "sensibilidade afetiva e moral", para evitar confusão com outro sentido da palavra "sensibilidade" usado mais adiante para traduzir o substantivo inglês sentience, que caracteriza os seres vivos dotados de sensação. (N.d.T.)))) ao mundo. Essa capacidade de resposta pode abranger uma vasta gama de afetos: prazer, raiva, dor, esperança, para citar apenas alguns. (Judith Butler. Ce qui fait une vie. Essai sur la violence, la guerre et le deuil)