====== Ser “dá-se”, ao invés de “é” ====== //Data: 2025-03-24 18:08// (Beaini1981:21-24) “Tudo o que é, todo ente, tem um ser. Pode-se assim falar do ser do homem, do animal, da planta, do mineral. Todos são; todos são entes. O que os faz ser entes não é, contudo, ele mesmo, um ente, mas o Ser. O que permite a todos os entes ser e ter um ser, seu ser é pois o Ser. (...) Sem ele, não poderíamos ter experiência de nenhum ente e, contudo, não é frequente que o tenhamos tematicamente em vista. O homem está disperso no ente ao ponto de aí perder-se e é por isto que ele não presta nenhuma atenção ao ser. Parece ao homem que é o ente que engendra o Ser.” ((De Waelhens e Walter Biemel, Introduction à la traduction française de l’opuscule de Martin Heidegger De l’essence de la vérité, Philosophes Contemporains, Textes et Études, Louvain, Nauwelaerts, Paris, Vrin, 1948, p. 19.)) O homem cotidianamente só se interessa pelo ente, porque o ente é aquilo que está à sua vista, que aparece. O ser do ente não aparece, de ordinário, em si próprio. Contudo, o ser não se identifica com o ente, nem pode ser reduzido a ele. O ser apresenta-se a nós, em uma primeira abordagem, como ser-do-ente. Isto porque o é pode ser aplicado inicialmente ao ente: uma árvore, um animal, o mundo; de onde podemos afirmar com toda a convicção que o ente é. O ser propriamente não é, ou seja, o ser não é, do mesmo modo que o ente. Contudo, o ser — que não é um ente — não se iguala ao vazio, enquanto é em si mesmo o fundamento (imperceptível sensivelmente) do ente. Assim, como podemos aplicar o é aos entes, de forma natural e até instintiva, através do pensar, poderemos atingir o âmbito onde o é se emprega prioritariamente ao ser.((Sobre o modo como o ser é, cf.: item 1 A do capítulo 2, item 1 do capítulo 3, itens 2 e 3 do capítulo 4.)) O ser é enquanto luz que des-vela o ente e dá a captá-lo. Ex.: a mundaneidade do mundo, ou seja, a estrutura do mundo bíblico, do mundo romano, de todos os mundos, é o ser do mundo, válido para qualquer especificidade que este adquira, porque é a estrutura que faz o mundo ser mundo. Na tradução do opúsculo de Heidegger, Da Experiência do Pensar, podemos notar como é aplica-se ao ente e ao ser: “O que é, geralmente se aceita como ente. Pois do ente se diz que é. Porém agora tudo retrocedeu. (...) O que é, de modo algum é o ente. Pois do ente só se dá o ele é, e o é, quando o ente for abordado em relação do seu Ser. No é se pronuncia Ser; isto que no sentido é, que significa o Ser do ente, é o Ser.” ((M. Heidegger, Da Experiência do Pensar (Aus der Erfahrung des Denkens), tradução, introdução e notas de Maria do Carmo Tavares de Miranda, Porto Alegre, Editora Globo, 1969, p.)) Contudo, convém que fique bem claro em que sentido aplicamos, aqui e no decorrer desta pesquisa, o é ao ser, ou seja, que o ser nunca é do mesmo modo como os entes são. O é diz-se propriamente do ser enquanto ser, do ser em si mesmo. Para evitar confusões terminológicas, Heidegger, na conferência Tempo e Ser, ((Cf.: M. Heidegger, “Tempo e Ser” (“Zeit und Sein”). In: O Fim da Filosofia ou A Questão do Pensamento, tradução de Ernildo Stein e revisão de José Geraldo Nogueira Moutinho, São Paulo, Duas Cidades, 1972, p. 42 ss.)) designa, para determinar o ser, o termo “dá-se” ao invés de “é”, deixando este último para definir o ente, sublinhando o fato de que o ser não é tomado como ser-do-ente, mas como o dom que se des-vela. Ernildo Stein, ao comentar Heidegger, diz explicitamente: “A experiência com a palavra indica aquilo, que se dá e que, contudo, não ‘é’.”((Ernildo Stein, Compreensão e Finitude; estrutura e movimento da interrogação heideggeriana, Tese de Livre-Docência, Porto Alegre, Ética Impressora, 1967, p. 225.)) Ou seja, o ser não é como o ente, enquanto não ocupa um lugar, não possui as características do ente, sendo que neste âmbito podemos dizer que o ser não é. Todavia, como empregamos aqui o é para designar o mesmo que Heidegger define como dá-se, ou seja, que o ser é enquanto des-vela-mento, presença, manteremos o termo é, ressaltando as menções feitas pelo autor em questão ao termo dá-se, cujo sentido e importância não ignoramos. Heidegger nos mostra, também, que nos movemos cotidianamente em meio ao é, que nos defrontamos com ente e ser, sem contudo captar o significado deste último termo, ou perceber que o ser se faz presente de modo próprio e diferente daquele como se manifesta o ente. “Nós não sabemos o que o ‘ser’ quer dizer. Mas desde que nos perguntamos ‘o que o ser é’, encontramo-nos já em uma certa compreensão do ‘é’, sem por isto poder fixar conceitualmente o que este ‘é’ significa. ( ..) Para a questão que desenvolvemos, o que é perguntado é o ser, isto é o que determina o ente como ente, aquilo a partir do qual o ente, de qualquer maneira que o tratemos, está sempre já compreendido. O ser do ente não ‘é’ ele mesmo um ente. (...) O ser, enquanto é o que é perguntado, reclama, pois, um modo de ‘mostração’ original, que se distingue essencialmente de todo modo de descoberta do ente.” ((M. Heidegger, L’Etre et le Temps (Sein und Zeit), traduit par Rudolf Boehms et Alphonse de Waelhens, Paris, Gallimard, 1965 p 21.)) O ser se mostra enquanto mostra o ente, pois o ser é o que constitui o ente como ente, é o fundamento, o sentido do ente. É através do ser que conhecemos o ente como tal; por isso, o ser é mais importante que o ente. Mas o que é visto pelo homem é o ente, enquanto o ser nos dá a conhecê-lo, porém nunca o ser. Se o ser se mostra através do ente, e não há ente sem ser, o caminho pelo qual acedemos ao ser é a partir do ente. O ser é a essência do ente que somos e de tudo o que é.